Tudo aconteceu muitos anos atrás,
em uma tribo que habitava uma ilha localizada no leito de um rio escuro e
caudaloso. Durante incontáveis gerações, a tribo dos Lek-lek (que era como eles
se chamavam) viveu totalmente isolada, sem ter nenhum contato e nem mesmo
conhecimento de outras tribos. A principal característica dessa tribo é que
seus integrantes andavam de quatro, arrastando-se no chão apoiados pelas palmas
das mãos e joelhos. Esse estranho costume tinha, talvez, origens religiosas, já
que os Lek-lek adoravam um deus em forma de porco, chamado Asur-Akten (que, em
lek-lekês, queria dizer Grande Fuçador), e consideravam os suínos animais
sagrados. O fato é que, durante séculos, nenhum Lek-lek havia ficado apoiado
apenas sobre os pés, e nem mesmo visto outro ser humano nessa posição. Os bebês
Lek-leks, por falta de exemplo, simplesmente não aprendiam a caminhar, e
continuavam engatinhando pelo resto de suas vidas.
A alimentação dos Lek-lek
consistia de frutas que caíam espontaneamente das árvores, quando já estavam
podres. Claro que, para os Lek-leks, não existia o conceito de “podre”, e eles
se referiam aos frutos que caíam, ou a ponto de cair, como mok-mok (palavra que
significava, em uma tradução livre, “caível”). Alguns dos Lek-lek, chamados de
aktens (“fuçadores”) se especializaram em cavar o solo atrás de gostosos e
carnudos cogumelos, que localizavam pelo faro. Durante incontáveis gerações, a
tribo Lek-lek viveu de forma relativamente pacífica, andando de quatro, comendo
frutas podres, venerando os porcos, e habitando isolada em sua ilhota
localizada no leito de um rio escuro e caudaloso. Tudo mudou, claro, com o
nascimento de Sut-rek, e com suas Seis Descobertas, que foi o nome pelo qual
sua saga ficou conhecida.
Sut-rek não era diferente dos outros lek-leks. Não era mais
forte nem mais inteligente que a maioria dos outros de sua idade. Como não era
nem alto nem agressivo, não se tornou um Porco Selvagem, que era como se
chamavam os guerreiros responsáveis por garantir a ordem na tribo e que
respondiam apenas ao Supremo Conselho de Sacerdotes, a autoridade máxima dos
lek-leks. Também não tinha um olfato extremamente apurado, e por isso não podia
almejar se tornar um fuçador. No dia em que fez cinco das suas famosas Seis
Descobertas, Sut-rek só queria comer uma fruta mok-mok.
As coisas aconteceram assim: Sut-rek havia passado a maior
parte da manhã embaixo de uma árvore frondosa, com os olhos famintos fixados
nas várias frutas que enchiam os galhos, mas que pareciam, todas, muito
distantes do ponto de mok-mokar. De fato, os frutos brilhavam com uma cor
vermelha intensa e brilhante, muito diferente da mistura de marrom e preto dos
frutos “caíveis”. Sut-rek, assim como todos os outros lek-leks, não sabia subir
em árvores, e por isso fez o que todos os outros lek-leks faziam: com os olhos
fechados, murmurou uma prece para Asur-Akten, rogando que o deus-porco
derrubasse alguma fruta com o sopro de seu focinho divino. Horas se passaram,
porém, sem que nada diferente acontecesse, e o único som que Sut-rek ouvia era
o ronco de seu estômago vazio, reclamando da fome que já durava vários dias.
Foi movido mais pelo estômago que pelo desespero que Sut-rek fez uma coisa
extraordinária, que nunca se ouvira dizer que outro Lek-lek havia jamais feito:
ele estendeu uma das mãos em direção aos galhos distantes, tentando, com todas
as forças, tocar um dos frutos, aquele que parecia o mais redondo e mais
brilhante. Foi como se a própria mão estendida puxasse, atrás de si, todo o
restante do corpo, e Sut-rek conseguiu, sem saber ao certo como, tocar o tão
desejado fruto. Quando sua mão encostou na superfície lisa da fruta, Sut-rek
olhou assustado para baixo, e foi nesse momento que fez sua Primeira
Descoberta: ele podia ficar em pé.
Ainda sem saber ao certo o que estava
acontecendo, Sut-rek percebeu que poderia fazer algo que os lek-leks não
achavam ser possível: puxar o fruto diretamente do galho. Ele o fez e, com sua
fome vencendo o medo, deu uma gostosa mordida no fruto que enchia sua mão. A
sensação foi indescritível: o sabor que sentiu era totalmente diferente daquele
que encontrava nos frutos mok-mok. A textura da fruta também era diferente: ao
invés da consistência pastosa e mole, sua polpa era dura e resistente, o que só
tornava a sensação de comê-la ainda mais agradável. Rapidamente Sut-rek comeu
outras cinco frutas, mais do que havia consumido na última semana. Sentindo-se
satisfeito como há muito não acontecia, Sut-rek reparou que, em uma árvore
próxima, também existiam vários frutos, esses de cor amarela, mas também
distantes de mok-mokar. O primeiro impulso de Sut-rek foi se abaixar para se
arrastar até a outra árvore. Um pensamento, porém, o parou: e se as pernas
esticadas não servissem só para levantá-lo mas, também, para que ele pudesse se
movimentar? De forma desajeitada e lenta, Sut-rek fez sua Segunda Descoberta:
ele podia caminhar! E foi assim, como um bebê dando os primeiros passos, que o
jovem lek-lek chegou até a outra árvore, onde provou os sabores até então
desconhecidos de outra fruta não mok-mok.
Sut-rek estava degustando sua
terceira árvore quando foi surpreendido por vozes irritadas, que o chamavam
pelo nome na estranha língua dos Lek-lek, que se assemelhava bastante aos
grunhidos emitidos pelos suínos. Ele se virou assustado e deu de cara com três
membros dos Porcos Selvagens, que o fitavam não menos atemorizados. O líder máximo
dos Porcos Selvagens, Rok-pik, estava à frente do trio, ordenando que Sut-rek
voltasse à posição normal dos Lek-lek. Nesse momento, Sut-rek não pôde conter
um sorriso. Ao ver, diante de si, Rok-pik gritando furioso, ele percebeu que o
poderoso guerreiro (que, desde a juventude, sempre impôs medo e respeito aos
lek-leks, devido à sua força física e selvageria) não lhe parecia nem um pouco
ameaçador, apoiado em suas mãos e joelhos. De fato, a insistência de Rok-pik
em esticar o pescoço para conseguir falar com Sut-rek tornava sua figura ainda
mais patética. Percebendo o sorriso, Rok-pik se enfureceu de vez e resolveu
partir para cima de Sut-rek, apontando contra ele as duas pontas de madeira
afiadas que saíam de seu capacete e que imitavam os dentes pontudos dos porcos
da ilha. Ao ver os guerreiros se aproximando rapidamente, Sut-rek subitamente não
os achou mais engraçados, e resolveu fugir o mais rápido que pôde, apoiado em
suas duas pernas. Foi aí que o jovem fez sua Terceira Descoberta: a corrida!
Depois de alguns minutos fugindo em uma velocidade que, minutos atrás, ele
julgava impossível ser alcançada por qualquer lek-lek, Sut-rek deu uma olhada
para trás, para conferir seus perseguidores. Ele se surpreendeu ao descobrir os
três Porcos Selvagens tão distantes dele que pareciam pequenos pontos no
horizonte. Embora avançassem o mais rápido que podiam, era óbvio que, enquanto
andassem de quatro, jamais conseguiriam chegar perto de Sut-rek, a menos que
ele permitisse.
Sut-rek, já sem medo dos guerreiros,
resolveu continuar correndo, simplesmente para ver aonde os seus pés o podiam
levar. Passaram-se vários minutos até que ele parasse diante do rio Lark, a fronteira
intransponível da terra dos Lek-lek. Intransponível não por ser um rio muito
largo ou por ter uma correnteza violenta, mas simplesmente por que nenhum
lek-lek sabia nadar. Naquele momento, porém, Sut-rek percebeu que o rio era
estreito, e teve uma ideia um tanto maluca: e se suas pernas pudessem ser
usadas para fazê-lo pular por cima do curso de água? Corajosamente, ele pegou
distância e fez, então, sua Quarta Descoberta: Sut-rek aprendeu a saltar!
Após pousar desajeitado do outro
lado do rio, Sut-rek percebeu que estava em um local que nunca fora antes explorado
por um Lek-lek. Naquela tarde, Sut-rek provou frutas desconhecidas, viu
cenários de tirar o fôlego, observou animais totalmente estranhos e percebeu
que o mundo era muito maior do que sempre havia imaginado. Foi no inicinho da
noite, enquanto provava uma fruta azul e doce, sentado em um galho alto de
árvore (sim, ele havia aprendido a escalar, sendo esta sua Quinta Descoberta),
que um pensamento atordoou o jovem lek-lek. Ele começou a pensar que aquela
vida que estava descobrindo agora era boa demais para não ser compartilhada.
Enquanto admirava o belíssimo pôr do sol e se sentia feliz e satisfeito pela
primeira vez na vida, Sut-rek começou a pensar em seus pais e seus amigos
sofrendo com seus estômagos vazios, rezando para que o Grande Fuçador
derrubasse alguma fruta mok-mok para saciar sua fome, que nunca acabava. Pensou
em todas as pessoas que gostava tendo que viver se arrastando pelo chão,
temendo os ataques dos ratos selvagens: em tantos pequenos lek-leks que
perderam olhos ou orelhas simplesmente porque eram obrigados a manter os rostos
perto do chão e, consequentemente, dos agressivos roedores (os storks, na
língua Lek-lek). Foi pensando em tudo isso que Sut-rek adormeceu. Quando
acordou, no outro dia, sua decisão estava tomada: ele iria anunciar aos Lek-lek
que existia uma vida melhor, e que ela estava ao alcance de todos.
Quando chegou, caminhando
lentamente, ao centro da aldeia, todos os lek-leks pararam para admirar o jovem
que se equilibrava sobre as pernas e que parecia, aos olhos deles, um gigante.
Algumas mulheres mais velhas desmaiaram, enquanto as crianças riam e olhavam
com admiração aquela estranha figura que, até algumas horas atrás, parecia tão
normal quanto qualquer outro integrante da tribo. Em questão de minutos, todos
os lek-leks se juntaram ao redor de Sut-rek, sem saber o que dizer. Como
ninguém falasse nada, foi Sut-rek quem falou, e, durante uma hora, o jovem
contou para seus pares as maravilhas da vida apoiada em apenas duas pernas: ele
falou do sabor indescritível das frutas não mok-mok; do mundo novo e maravilhoso
que existia depois do rio Lark; de como as distâncias são menores quando se
corre em cima dos pés; de como os storks são facilmente mortos quando pisados;
em suma, Sut-rek contou a todos que era possível viver uma vida sem fome, sem
medo, sem limites. E que, para isso, bastava fazer como ele havia feito: se
levantar. “Não precisamos mais viver como os porcos!”, bradou, emocionado, o
jovem lek-lek, diante do olhar atônito de toda a tribo.
Foi nesse momento que algo
inusitado aconteceu: Od-tork, o mais velho e venerável dos lek-leks e líder
máximo do Conselho Supremo de Sacerdotes, que até então havia se mantido
quieto, levantou os olhos e fez um sinal para Sut-rek, como que querendo
dizer-lhe algo em particular. Surpreso com o gesto do ancião, Sut-rek
abaixou-se imediatamente e aproximou seu ouvido da boca de Od-tork. Foi aí que
Sut-rek sentiu uma dor repentina na nuca. Antes de desmaiar, ele ainda
conseguiu olhar para trás e ver o rosto sorridente de Rok-pik, que segurava em
uma das mãos uma pedra ensanguentada.
Quando acordou, Sut-rek estava em
uma pequena estrutura de madeira, boiando mansamente no rio escuro que
circundava a ilha Lek-lek. A estrutura se prendia à margem por uma corda e, na pequena
praia, estava toda a tribo Lek-lek, olhando firmemente para Sut-rek. À frente
de todos estava Od-tork, que começou a falar lentamente e com voz grave sobre a
importância de se respeitar as tradições da tribo, principalmente a adoração à
Asur-akten, o Grande Fuçador, que com o sopro de seu focinho dava vida a todos
e que com seu excremento havia criado o Mundo, que eles chamavam de Asur-atuk,
“o grande chiqueiro”. Sut-rek sabia exatamente o que estava acontecendo: ele fora
sentenciado à morte, e sua pena seria aquela temida por todo lek-lek desde a
mais tenra infância: o afogamento. Depois de alguns minutos de discurso, o
ancião deu a ordem, e Rok-pik executou a sentença: com uma das mãos, o Porco
Selvagem arremessou uma machadinha em chamas, que atingiu e incendiou a
estrutura de madeira flutuante. Sut-rek fez, então, aquilo que os lek-leks
condenados à morte fazem: saltou para o rio de águas escuras, procurando fugir
das chamas implacáveis. Ao cair na água, Sut-rek afundou imediatamente. Em
poucos minutos, o movimento no rio cessou, indicando que, mais uma vez, um lek-lek
havia sofrido a pior das mortes.
A multidão, que a tudo assistira silenciosamente,
começou a se retirar, também em silêncio: as crianças, tristes, não tiravam os
olhos do chão, e algumas mulheres passavam as costas das mãos nos olhos,
enxugando as lágrimas que insistiam em brotar. Foi então que aconteceu algo
absolutamente inédito: Sut-rek, em seu desespero, apoiou os pés no fundo do
rio, e, com um só movimento, ficou de pé. Foi aí que ele fez sua Sexta e Última
Descoberta: o rio que cercava a ilha era raso, fato até então desconhecido
pelos lek-leks, devido à cor escura das águas. De fato, agora que estava de pé,
Sut-rek percebeu que a profundidade do rio dava em seu peito, e que ele podia
andar livremente, sem se afogar. E foi o que fez: virando as costas para a
tribo, começou a caminhar dentro da água, indo em direção à distante outra margem
do rio. Todo o povo Lek-lek observou calado enquanto a figura de Sut-rek
diminuía lentamente no horizonte, até finalmente alcançar a margem inexplorada.
Eles observaram o jovem deixar o rio e desaparecer por entre as árvores, sem
olhar para trás nem uma vez sequer.
Depois daquele dia, Sut-rek nunca
mais foi visto pelos Lek-lek. Seu nome, também, nunca mais foi repetido, pelo
menos não em voz alta. O Conselho Supremo de Sacerdotes decretou que aquele dia
nunca havia acontecido, e qualquer um que falasse em Sut-rek, ou em
sobrevivência ao afogamento, e mesmo na possibilidade de se ficar em pé, seria
executado imediatamente. E essa lei está em vigor até hoje, sendo observada com
rigor pelos lek-leks.
Mas a história de Sut-rek e de
suas Seis Descobertas continua, de alguma forma, a existir. Um pequeno grupo de
lek-leks se reúne, secretamente, para lembrar e repetir partes do discurso que
Sut-rek proferiu no meio da tribo. Eles tentam imaginar o sabor das frutas não
mok-mok, teorizam sobre o que existe na outra margem do rio Lark, e sonham com
um mundo onde as mãos são utilizadas não para caminhar, mas para pegar coisas
que estão em lugares altos. Em suas reuniões secretas, os sut-reks (que é como
chamam a si mesmos) cantam e dançam a noite toda, em torno de pequenas
fogueiras. Alguns deles, apoiados apenas sobre as pernas.