quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O segredo de João Batista




Dentre os diversos personagens que povoam o Novo Testamento, uma das figuras mais diferentes e enigmáticas atende pelo nome de João Batista. Um dos fatos mais intrigantes a respeito do primo de Jesus foi a própria declaração do Filho de Deus a respeito dele: “Eu lhes digo que entre os que nasceram de mulher não há ninguém maior do que João; todavia, o menor no Reino de Deus é maior do que ele" (Lucas 7:28). A ousada afirmação deixa claro que, antes da era da Igreja, ou seja, entre aqueles que não experimentaram o Novo Nascimento (“Digo-lhe a verdade: Ninguém pode ver o Reino de Deus, se não nascer de novo" - João 3:3), não houve ninguém superior a João Batista, e estamos incluindo aí Moisés, Davi, Elias, entre muitos outros.

A pergunta que nos fazemos, então, é esta: afinal, o que tinha João Batista de tão superior? O que ele realizou de tão magnífico que o colocou em um patamar acima de tão grandes vultos da Velha Aliança? A resposta, eu acredito, pode ser encontrada no evangelho de João: “Então Jesus atravessou novamente o Jordão e foi para o lugar onde João batizava nos primeiros dias do seu ministério. Ali ficou, e muita gente foi até onde ele estava, dizendo: ‘Embora João nunca tenha realizado um sinal miraculoso, tudo o que ele disse a respeito deste homem era verdade’. E ali muitos creram em Jesus” (João 10:40-42). Qual era, portanto, o diferencial na vida de João? Não eram os sinais, milagres e prodígios, coisas inexistentes em seu ministério terreno. O diferencial de João era sua MENSAGEM.

O estudo da Palavra nos mostra claramente que todo o Velho Testamento converge para um só alvo: Jesus, o Filho de Deus. E, embora possamos encontrar indícios a respeito do Messias em vários profetas da Velha Aliança, a revelação mais clara a respeito Dele veio mesmo através do Batista. Foi ele que afirmou, categoricamente, “eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!” (João 1:29). Foi ele que preparou o povo para a chegada do Messias, afirmando que aquele que viria seria muito mais poderoso do que ele mesmo, e que batizaria “com o Espírito Santo e com fogo” (Mateus 3:11).

Foi a mensagem exata a respeito de Jesus que o colocou em uma posição tão elevada diante do próprio Deus. De fato, João viveu e morreu pela sua mensagem. Ela era tão importante para ele que ele considerava seu próprio ministério secundário em relação a ela. É por isso que, quando questionado a respeito do crescimento do número de seguidores de Jesus (algo que poderia preocupar alguém que estivesse visando seu próprio ministério) respondeu simplesmente: “Convém que Ele cresça e que eu diminua” (João 3:30). João entendia que seu sucesso pessoal era irrelevante, desde que sua MENSAGEM, que era o próprio Jesus, crescesse e atingisse as pessoas. O compromisso de João com a integridade de sua pregação foi tão grande que ele, de fato, morreu por causa disso. Sua condenação não foi provocada por ser um agitador político ou um subversivo, mas simplesmente por não se calar diante do pecado do rei Herodes, que havia se casado com a mulher de seu irmão (contrariando o mandamento contido em Levítico 18:16). Sua morte aconteceu por ele se recusar a ir contra a Verdade.

Degolação de São João Batista, Victor Meirelles de Lima


Mesmo não tendo um ministério “espetacular”, marcado por sinais e maravilhas, a influência de João Batista era inegável e permaneceu por muito tempo depois de sua morte. Afinal, os fariseus, que não temiam chamar Jesus de “Belzebu”, não ousavam dizer uma palavra contra o falecido João, já que o povo o considerava profeta (Marcos 11:32). Além disso, anos depois da morte e ressurreição de Jesus, o apóstolo Paulo conheceu em Éfeso um grupo de discípulos que nada sabiam a respeito do Espírito Santo, mas conheciam o batismo de João (Atos 19).

A história de João pode servir como um exemplo para todos que desejam um ministério de sucesso. Sua pregação simples e sem demonstrações de poder atraiu multidões ao deserto, que iam até ele e encontravam mudança de vida baseada na promessa da vinda do Messias e da chegada do Reino de Deus. Para nós, o Messias já veio, e nos tornamos embaixadores de Seu Reino. Mais importante que as estratégias que adotamos, é a MENSAGEM que pregamos. Se quisermos um ministério de sucesso, precisamos, assim como fez João, simplesmente pregar Jesus.






quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Medo e desejo: as duas faces da fé




O que o ímpio teme lhe acontecerá; o que os justos desejam lhes será concedido.
Provérbios 10:24


O versículo acima traz duas das principais forças que direcionam e impulsionam nossas vidas: o Medo e o Desejo. O trecho também nos mostra a visão bíblica mais tradicional sobre o assunto, ou seja, a noção de que os pecadores atraem sobre suas vidas aquilo que temem, assim como os justos fazem com aquilo que desejam. Essa visão, porém, é facilmente desmentida, não só pela observação do nosso dia a dia, mas também (e mais importante) pela própria Bíblia.

O livro de Jó, por exemplo (por sinal, o mais antigo das Escrituras), nos mostra a história de um homem que, apesar de ser chamado de “íntegro, justo, temente a Deus e que evitava o mal” (Jó 1:1) pelo próprio texto, acaba sofrendo exatamente aquilo de que tinha medo: “O que eu temia veio sobre mim; o que eu receava me aconteceu” (Jó 3:25). Além disso, o próprio discurso de Jó em sua defesa traz a observação de que, muitas vezes, os desejos dos ímpios se realizam: “Por que vivem os ímpios? Por que chegam à velhice e aumentam seu poder? Eles veem os seus filhos estabelecidos ao seu redor, e os seus descendentes diante dos seus olhos. Seus lares estão seguros e livres de medo; a vara de Deus não os vem ferir. Seus touros nunca deixam de procriar; suas vacas dão crias e não abortam. Eles soltam os seus filhos como um rebanho; seus pequeninos põem-se a dançar. Cantam, acompanhando a música do tamborim e da harpa; alegram-se ao som da flauta. Passam a vida na prosperidade e descem à sepultura em paz” (Jó 21:7-13). 

É possível perceber, portanto, que a concretização dos nossos medos e a realização dos nossos desejos não depende somente de sermos ímpios ou justos, mas de algo mais. E o que seria esse algo mais? A resposta, claro, está na própria Bíblia, mais especificamente em Marcos 11:23: “Porque em verdade vos digo que qualquer que disser a este monte: Ergue-te e lança-te no mar, e não duvidar em seu coração, mas crer que se fará aquilo que diz, tudo o que disser lhe será feito”. Quando Jesus diz ALGUÉM, ele automaticamente elimina a separação dos homens entre “pecadores” e “justos”. De fato, o que ele faz é apresentar uma Lei Geral que rege a vida das pessoas, independente de seu compromisso com Deus. E a Lei é: “as suas palavras definem a sua vida”.

Voltando para Jó, notamos que ele era um homem que, apesar de reconhecido como justo, demonstrava, com suas atitudes, que temia que o mal se abatesse sobre ele e sua família. No primeiro capítulo do livro, percebemos que ele adotava uma rotina ditada pelo medo: “E iam seus filhos à casa uns dos outros e faziam banquetes cada um por sua vez; e mandavam convidar as suas três irmãs a comerem e beberem com eles. Sucedia, pois, que, decorrido o turno de dias de seus banquetes, enviava Jó, e os santificava, e se levantava de madrugada, e oferecia holocaustos segundo o número de todos eles; porque dizia Jó: Porventura pecaram meus filhos, e amaldiçoaram a Deus no seu coração. Assim fazia Jó continuamente” (Jó 1:4,5). Observe que o texto nos mostra que Jó DIZIA. Suas palavras confirmavam, continuamente, que ele temia, não o fato de que seus filhos tivessem amaldiçoado a Deus NO CORAÇÃO (note o nível da paranoia de Jó, seu medo dos supostos pensamentos dos filhos), já que, se fosse assim, a melhor atitude de sua parte seria ter uma boa conversa com os mesmos. Mas não, o medo de Jó não era que seus filhos pecassem, mas sim que esse pecado trouxesse como consequência a desgraça sobre sua família. Por isso sua atitude de defesa: ele realizava um sacrifício de sangue, como forma de cobrir os pecados e se proteger da ira de Deus. No final, a confissão contínua de Jó acabou fazendo com que seus temores virassem realidade, em total consonância com o ensino de Jesus em Marcus 11 (para uma visão mais profunda sobre o assunto, recomendo a leitura de Jó e o sofrimento do justo, de Rozilon Lourenço). 



Se entendemos, portanto, que as palavras equivocadas de um justo podem fazer com que seus temores se realizem, não seria absurdo pensar que as palavras positivas dos ímpios possam fazer de seus sonhos realidade. Deus, afinal, não é religioso, e uma de suas mais marcantes características é justamente sua bondade para com todos, até para com aqueles que não O conhecem. Como ensinou o apóstolo Paulo em sua pregação em Listra: “No passado Ele [Deus] permitiu que todas as nações seguissem os seus próprios caminhos. Contudo, não ficou sem testemunho: mostrou Sua bondade, dando-lhes chuva do céu e colheitas no tempo certo, concedendo-lhes sustento com fartura e enchendo de alegria os seus corações" (Atos 14:16-17).

A lição que fica para nós é clara: devemos ficar atentos às nossas palavras, declarando os nossos sonhos com fé e não confessando nossos medos. Só assim, enchendo nosso coração de fé e lançando fora todo o medo, iremos de fato viver a vida que Deus deseja para nós. 







quarta-feira, 12 de setembro de 2018

CONTO #5: HOMO ERECTUS







Tudo aconteceu muitos anos atrás, em uma tribo que habitava uma ilha localizada no leito de um rio escuro e caudaloso. Durante incontáveis gerações, a tribo dos Lek-lek (que era como eles se chamavam) viveu totalmente isolada, sem ter nenhum contato e nem mesmo conhecimento de outras tribos. A principal característica dessa tribo é que seus integrantes andavam de quatro, arrastando-se no chão apoiados pelas palmas das mãos e joelhos. Esse estranho costume tinha, talvez, origens religiosas, já que os Lek-lek adoravam um deus em forma de porco, chamado Asur-Akten (que, em lek-lekês, queria dizer Grande Fuçador), e consideravam os suínos animais sagrados. O fato é que, durante séculos, nenhum Lek-lek havia ficado apoiado apenas sobre os pés, e nem mesmo visto outro ser humano nessa posição. Os bebês Lek-leks, por falta de exemplo, simplesmente não aprendiam a caminhar, e continuavam engatinhando pelo resto de suas vidas.
A alimentação dos Lek-lek consistia de frutas que caíam espontaneamente das árvores, quando já estavam podres. Claro que, para os Lek-leks, não existia o conceito de “podre”, e eles se referiam aos frutos que caíam, ou a ponto de cair, como mok-mok (palavra que significava, em uma tradução livre, “caível”). Alguns dos Lek-lek, chamados de aktens (“fuçadores”) se especializaram em cavar o solo atrás de gostosos e carnudos cogumelos, que localizavam pelo faro. Durante incontáveis gerações, a tribo Lek-lek viveu de forma relativamente pacífica, andando de quatro, comendo frutas podres, venerando os porcos, e habitando isolada em sua ilhota localizada no leito de um rio escuro e caudaloso. Tudo mudou, claro, com o nascimento de Sut-rek, e com suas Seis Descobertas, que foi o nome pelo qual sua saga ficou conhecida.


Sut-rek não era diferente dos outros lek-leks. Não era mais forte nem mais inteligente que a maioria dos outros de sua idade. Como não era nem alto nem agressivo, não se tornou um Porco Selvagem, que era como se chamavam os guerreiros responsáveis por garantir a ordem na tribo e que respondiam apenas ao Supremo Conselho de Sacerdotes, a autoridade máxima dos lek-leks. Também não tinha um olfato extremamente apurado, e por isso não podia almejar se tornar um fuçador. No dia em que fez cinco das suas famosas Seis Descobertas, Sut-rek só queria comer uma fruta mok-mok.

As coisas aconteceram assim: Sut-rek havia passado a maior parte da manhã embaixo de uma árvore frondosa, com os olhos famintos fixados nas várias frutas que enchiam os galhos, mas que pareciam, todas, muito distantes do ponto de mok-mokar. De fato, os frutos brilhavam com uma cor vermelha intensa e brilhante, muito diferente da mistura de marrom e preto dos frutos “caíveis”. Sut-rek, assim como todos os outros lek-leks, não sabia subir em árvores, e por isso fez o que todos os outros lek-leks faziam: com os olhos fechados, murmurou uma prece para Asur-Akten, rogando que o deus-porco derrubasse alguma fruta com o sopro de seu focinho divino. Horas se passaram, porém, sem que nada diferente acontecesse, e o único som que Sut-rek ouvia era o ronco de seu estômago vazio, reclamando da fome que já durava vários dias. Foi movido mais pelo estômago que pelo desespero que Sut-rek fez uma coisa extraordinária, que nunca se ouvira dizer que outro Lek-lek havia jamais feito: ele estendeu uma das mãos em direção aos galhos distantes, tentando, com todas as forças, tocar um dos frutos, aquele que parecia o mais redondo e mais brilhante. Foi como se a própria mão estendida puxasse, atrás de si, todo o restante do corpo, e Sut-rek conseguiu, sem saber ao certo como, tocar o tão desejado fruto. Quando sua mão encostou na superfície lisa da fruta, Sut-rek olhou assustado para baixo, e foi nesse momento que fez sua Primeira Descoberta: ele podia ficar em pé.

Ainda sem saber ao certo o que estava acontecendo, Sut-rek percebeu que poderia fazer algo que os lek-leks não achavam ser possível: puxar o fruto diretamente do galho. Ele o fez e, com sua fome vencendo o medo, deu uma gostosa mordida no fruto que enchia sua mão. A sensação foi indescritível: o sabor que sentiu era totalmente diferente daquele que encontrava nos frutos mok-mok. A textura da fruta também era diferente: ao invés da consistência pastosa e mole, sua polpa era dura e resistente, o que só tornava a sensação de comê-la ainda mais agradável. Rapidamente Sut-rek comeu outras cinco frutas, mais do que havia consumido na última semana. Sentindo-se satisfeito como há muito não acontecia, Sut-rek reparou que, em uma árvore próxima, também existiam vários frutos, esses de cor amarela, mas também distantes de mok-mokar. O primeiro impulso de Sut-rek foi se abaixar para se arrastar até a outra árvore. Um pensamento, porém, o parou: e se as pernas esticadas não servissem só para levantá-lo mas, também, para que ele pudesse se movimentar? De forma desajeitada e lenta, Sut-rek fez sua Segunda Descoberta: ele podia caminhar! E foi assim, como um bebê dando os primeiros passos, que o jovem lek-lek chegou até a outra árvore, onde provou os sabores até então desconhecidos de outra fruta não mok-mok.


Sut-rek estava degustando sua terceira árvore quando foi surpreendido por vozes irritadas, que o chamavam pelo nome na estranha língua dos Lek-lek, que se assemelhava bastante aos grunhidos emitidos pelos suínos. Ele se virou assustado e deu de cara com três membros dos Porcos Selvagens, que o fitavam não menos atemorizados. O líder máximo dos Porcos Selvagens, Rok-pik, estava à frente do trio, ordenando que Sut-rek voltasse à posição normal dos Lek-lek. Nesse momento, Sut-rek não pôde conter um sorriso. Ao ver, diante de si, Rok-pik gritando furioso, ele percebeu que o poderoso guerreiro (que, desde a juventude, sempre impôs medo e respeito aos lek-leks, devido à sua força física e selvageria) não lhe parecia nem um pouco ameaçador, apoiado em suas mãos e joelhos. De fato, a insistência de Rok-pik em esticar o pescoço para conseguir falar com Sut-rek tornava sua figura ainda mais patética. Percebendo o sorriso, Rok-pik se enfureceu de vez e resolveu partir para cima de Sut-rek, apontando contra ele as duas pontas de madeira afiadas que saíam de seu capacete e que imitavam os dentes pontudos dos porcos da ilha. Ao ver os guerreiros se aproximando rapidamente, Sut-rek subitamente não os achou mais engraçados, e resolveu fugir o mais rápido que pôde, apoiado em suas duas pernas. Foi aí que o jovem fez sua Terceira Descoberta: a corrida! Depois de alguns minutos fugindo em uma velocidade que, minutos atrás, ele julgava impossível ser alcançada por qualquer lek-lek, Sut-rek deu uma olhada para trás, para conferir seus perseguidores. Ele se surpreendeu ao descobrir os três Porcos Selvagens tão distantes dele que pareciam pequenos pontos no horizonte. Embora avançassem o mais rápido que podiam, era óbvio que, enquanto andassem de quatro, jamais conseguiriam chegar perto de Sut-rek, a menos que ele permitisse.

Sut-rek, já sem medo dos guerreiros, resolveu continuar correndo, simplesmente para ver aonde os seus pés o podiam levar. Passaram-se vários minutos até que ele parasse diante do rio Lark, a fronteira intransponível da terra dos Lek-lek. Intransponível não por ser um rio muito largo ou por ter uma correnteza violenta, mas simplesmente por que nenhum lek-lek sabia nadar. Naquele momento, porém, Sut-rek percebeu que o rio era estreito, e teve uma ideia um tanto maluca: e se suas pernas pudessem ser usadas para fazê-lo pular por cima do curso de água? Corajosamente, ele pegou distância e fez, então, sua Quarta Descoberta: Sut-rek aprendeu a saltar!


Após pousar desajeitado do outro lado do rio, Sut-rek percebeu que estava em um local que nunca fora antes explorado por um Lek-lek. Naquela tarde, Sut-rek provou frutas desconhecidas, viu cenários de tirar o fôlego, observou animais totalmente estranhos e percebeu que o mundo era muito maior do que sempre havia imaginado. Foi no inicinho da noite, enquanto provava uma fruta azul e doce, sentado em um galho alto de árvore (sim, ele havia aprendido a escalar, sendo esta sua Quinta Descoberta), que um pensamento atordoou o jovem lek-lek. Ele começou a pensar que aquela vida que estava descobrindo agora era boa demais para não ser compartilhada. Enquanto admirava o belíssimo pôr do sol e se sentia feliz e satisfeito pela primeira vez na vida, Sut-rek começou a pensar em seus pais e seus amigos sofrendo com seus estômagos vazios, rezando para que o Grande Fuçador derrubasse alguma fruta mok-mok para saciar sua fome, que nunca acabava. Pensou em todas as pessoas que gostava tendo que viver se arrastando pelo chão, temendo os ataques dos ratos selvagens: em tantos pequenos lek-leks que perderam olhos ou orelhas simplesmente porque eram obrigados a manter os rostos perto do chão e, consequentemente, dos agressivos roedores (os storks, na língua Lek-lek). Foi pensando em tudo isso que Sut-rek adormeceu. Quando acordou, no outro dia, sua decisão estava tomada: ele iria anunciar aos Lek-lek que existia uma vida melhor, e que ela estava ao alcance de todos.

Quando chegou, caminhando lentamente, ao centro da aldeia, todos os lek-leks pararam para admirar o jovem que se equilibrava sobre as pernas e que parecia, aos olhos deles, um gigante. Algumas mulheres mais velhas desmaiaram, enquanto as crianças riam e olhavam com admiração aquela estranha figura que, até algumas horas atrás, parecia tão normal quanto qualquer outro integrante da tribo. Em questão de minutos, todos os lek-leks se juntaram ao redor de Sut-rek, sem saber o que dizer. Como ninguém falasse nada, foi Sut-rek quem falou, e, durante uma hora, o jovem contou para seus pares as maravilhas da vida apoiada em apenas duas pernas: ele falou do sabor indescritível das frutas não mok-mok; do mundo novo e maravilhoso que existia depois do rio Lark; de como as distâncias são menores quando se corre em cima dos pés; de como os storks são facilmente mortos quando pisados; em suma, Sut-rek contou a todos que era possível viver uma vida sem fome, sem medo, sem limites. E que, para isso, bastava fazer como ele havia feito: se levantar. “Não precisamos mais viver como os porcos!”, bradou, emocionado, o jovem lek-lek, diante do olhar atônito de toda a tribo.

Foi nesse momento que algo inusitado aconteceu: Od-tork, o mais velho e venerável dos lek-leks e líder máximo do Conselho Supremo de Sacerdotes, que até então havia se mantido quieto, levantou os olhos e fez um sinal para Sut-rek, como que querendo dizer-lhe algo em particular. Surpreso com o gesto do ancião, Sut-rek abaixou-se imediatamente e aproximou seu ouvido da boca de Od-tork. Foi aí que Sut-rek sentiu uma dor repentina na nuca. Antes de desmaiar, ele ainda conseguiu olhar para trás e ver o rosto sorridente de Rok-pik, que segurava em uma das mãos uma pedra ensanguentada.

Quando acordou, Sut-rek estava em uma pequena estrutura de madeira, boiando mansamente no rio escuro que circundava a ilha Lek-lek. A estrutura se prendia à margem por uma corda e, na pequena praia, estava toda a tribo Lek-lek, olhando firmemente para Sut-rek. À frente de todos estava Od-tork, que começou a falar lentamente e com voz grave sobre a importância de se respeitar as tradições da tribo, principalmente a adoração à Asur-akten, o Grande Fuçador, que com o sopro de seu focinho dava vida a todos e que com seu excremento havia criado o Mundo, que eles chamavam de Asur-atuk, “o grande chiqueiro”. Sut-rek sabia exatamente o que estava acontecendo: ele fora sentenciado à morte, e sua pena seria aquela temida por todo lek-lek desde a mais tenra infância: o afogamento. Depois de alguns minutos de discurso, o ancião deu a ordem, e Rok-pik executou a sentença: com uma das mãos, o Porco Selvagem arremessou uma machadinha em chamas, que atingiu e incendiou a estrutura de madeira flutuante. Sut-rek fez, então, aquilo que os lek-leks condenados à morte fazem: saltou para o rio de águas escuras, procurando fugir das chamas implacáveis. Ao cair na água, Sut-rek afundou imediatamente. Em poucos minutos, o movimento no rio cessou, indicando que, mais uma vez, um lek-lek havia sofrido a pior das mortes.

A multidão, que a tudo assistira silenciosamente, começou a se retirar, também em silêncio: as crianças, tristes, não tiravam os olhos do chão, e algumas mulheres passavam as costas das mãos nos olhos, enxugando as lágrimas que insistiam em brotar. Foi então que aconteceu algo absolutamente inédito: Sut-rek, em seu desespero, apoiou os pés no fundo do rio, e, com um só movimento, ficou de pé. Foi aí que ele fez sua Sexta e Última Descoberta: o rio que cercava a ilha era raso, fato até então desconhecido pelos lek-leks, devido à cor escura das águas. De fato, agora que estava de pé, Sut-rek percebeu que a profundidade do rio dava em seu peito, e que ele podia andar livremente, sem se afogar. E foi o que fez: virando as costas para a tribo, começou a caminhar dentro da água, indo em direção à distante outra margem do rio. Todo o povo Lek-lek observou calado enquanto a figura de Sut-rek diminuía lentamente no horizonte, até finalmente alcançar a margem inexplorada. Eles observaram o jovem deixar o rio e desaparecer por entre as árvores, sem olhar para trás nem uma vez sequer.

Depois daquele dia, Sut-rek nunca mais foi visto pelos Lek-lek. Seu nome, também, nunca mais foi repetido, pelo menos não em voz alta. O Conselho Supremo de Sacerdotes decretou que aquele dia nunca havia acontecido, e qualquer um que falasse em Sut-rek, ou em sobrevivência ao afogamento, e mesmo na possibilidade de se ficar em pé, seria executado imediatamente. E essa lei está em vigor até hoje, sendo observada com rigor pelos lek-leks.
Mas a história de Sut-rek e de suas Seis Descobertas continua, de alguma forma, a existir. Um pequeno grupo de lek-leks se reúne, secretamente, para lembrar e repetir partes do discurso que Sut-rek proferiu no meio da tribo. Eles tentam imaginar o sabor das frutas não mok-mok, teorizam sobre o que existe na outra margem do rio Lark, e sonham com um mundo onde as mãos são utilizadas não para caminhar, mas para pegar coisas que estão em lugares altos. Em suas reuniões secretas, os sut-reks (que é como chamam a si mesmos) cantam e dançam a noite toda, em torno de pequenas fogueiras. Alguns deles, apoiados apenas sobre as pernas.  

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Submissão é Liberdade









“Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar”
(I Samuel 15.22)

A questão da submissão é, provavelmente, uma das mais mal compreendidas na atual Igreja de Deus. Faz sentido que seja assim, afinal, vivemos em uma sociedade que é uma das que mais têm celebrado e ansiado pela “liberdade”, ao longo de toda a História da Humanidade.

Pelo menos desde a eclosão da Revolução Francesa (1789-1799), com seu lema: “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, o mundo tem vivido esse desejo de alcançar e viver plenamente a liberdade. De lá pra cá, assistimos à queda das monarquias (substituídas por repúblicas democráticas), separação entre Igreja e Estado e a virtual extinção da prática da escravidão na cultura ocidental. Mais recentemente, no século XX, vimos o surgimento, e  o fortalecimento, dos movimentos sociais, criados com o objetivo de garantir a liberdade das mais diversas minorias.

Na atual sociedade ocidental, a Igreja e as Forças Armadas são praticamente as únicas instituições em que a questão do respeito e da submissão às autoridades é ainda defendido e pregado. É difícil imaginar, na realidade de hoje, uma figura de destaque, que não seja um pastor ou um padre, que defenda abertamente a posição da mulher como “submissa” ao marido. Esse tipo de afirmação, fora dos círculos religiosos, soa absurda em qualquer esfera da sociedade moderna.

Mas, quando tiramos os olhos do mundo ao nosso redor, e os colocamos na Palavra de Deus, vemos uma realidade absolutamente diferente. A Bíblia é um livro que, do início ao fim, defende a “obediência” (ou submissão) e combate ferozmente a “desobediência” (ou rebeldia). A queda do Homem, ainda em Gênesis, foi causada exclusivamente pela desobediência do ser humano a uma ordem direta do criador: “não comerás”. Paulo ilustra belamente essa verdade ao apresentar as figuras do primeiro e do último Adão:

“Logo, assim como por meio da desobediência de um só homem [Adão] muitos foram feitos pecadores, assim também, por meio da obediência de um único homem [Jesus] muitos serão feitos justos”. (Romanos 5:19)

O que Paulo faz, ao falar dos dois “Adões”, é nos mostrar quais são as únicas opções entre as quais devemos escolher: ou a desobediência ao plano de Deus, que nos leva à morte (a escolha do primeiro Adão); ou a completa submissão aos propósitos de Deus, que nos conduz à verdadeira vida (a escolha de Jesus, que foi obediente até à morte, e morte de cruz).

Mais uma vez, vem a pergunta: como a Igreja de Deus pode defender a submissão, em um mundo que busca, cada vez mais, e a um preço muito alto, a “liberdade”? A resposta pode ser encontrada nos próprios escritos do apóstolo Paulo. Em Romanos, no capítulo 6, somos apresentados, novamente, aos dois únicos caminhos possíveis em nossa vida: “Não sabem que, quando vocês se oferecem a alguém para lhe obedecer como escravos, tornam-se escravos daquele a quem obedecem: escravos do pecado que leva à morte, ou da obediência que leva à justiça?” O que Paulo explica nesse trecho é algo que podemos notar simplesmente observando o mundo ao nosso redor: existe uma linha muito tênue entre “liberdade” e “escravidão”.

De fato, aquilo que o Mundo prega (“faça aquilo que te faz feliz”) tem resultado, justamente, em pessoas infelizes. É fácil perceber que alguém que come de forma “liberada” (consumindo aquilo que quer e na quantidade desejada) está a apenas um passo de se tornar um escravo da comida. Da mesma forma, alguém que possui uma vida sexual “liberal” (tendo relações sexuais com qualquer um que provoque seus desejos sensuais) está perto de ser alguém viciado em sexo, escravizado às vontades de seu corpo. O resultado da “liberdade” pregada pelo Mundo nada mais é do que a escravidão do homem ao seu próprio corpo.

Sabemos que somos seres trinos, compostos de corpo, alma e espírito. O que a Bíblia nos propõe, e que é uma loucura para o Mundo, é que a única liberdade possível para o ser humano é a submissão do corpo ao espírito, o que só pode ser obtido através da renovação da alma, através da Palavra de Deus. O inverso disso seria a submissão da alma e do espírito aos impulsos do corpo. Essa submissão é absolutamente autodestrutiva, já que “a inclinação da carne é morte; mas a inclinação do espírito é vida e paz” (Romanos 8.6). É de certa forma admirável que o Sistema do Mundo tenha conseguido convencer tanta gente que essa escravidão ao corpo seja o ideal de liberdade.

Assim, a conclusão a que podemos chegar é que a liberdade só pode ser encontrada quando nos submetemos, espontaneamente, aos impulsos de nosso próprio espírito recriado segundo Cristo. É notável que a liberdade que podemos experimentar hoje era algo impossível na Antiga Aliança. Não é à toa que a Bíblia nos afirma claramente que o que experimentamos, em Cristo, é completamente diferente da submissão experimentada pelos crentes piedosos, que viviam sob a Lei de Moisés: “Pois vocês não receberam um espírito que os escravize para novamente temer, mas receberam o Espírito que os adota como filhos, por meio do qual clamamos: ‘Aba, Pai’” (Romanos 8.15).

Que verdade maravilhosa! O máximo que uma pessoa que cresce em Deus podia fazer antes de Jesus, era se submeter a mandamentos escritos, obrigando seu corpo a agir segundo uma Lei que lhe indicava o caminho da salvação. O melhor que essas pessoas poderiam esperar, era imitar o homem justo e íntegro mostrado na Lei, mas nunca chegando a ser, de fato, esse homem, porque “não há homem justo sobre a terra, que faça o bem, e nunca peque” (Eclesiastes 7.20). Mas GRAÇAS A DEUS pela obra de Jesus, que nos permite viver sob a Nova Aliança, “para que sirvamos conforme o novo modo do Espírito, e não segundo a velha forma da lei escrita” (Romanos 7.6).

Ao nos submeter à Vontade de Deus estamos, de fato, obedecendo aos nossos próprios espíritos recriados. Como somos seres espirituais, estamos, em última instância, obedecendo a nós mesmos. Essa submissão é, portanto, a única verdadeira liberdade. “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (João 8.36).



OBSERVAÇÃO: Este estudo foi publicado no portal da Igreja Verbo da Vida: http://verbodavida.org.br/mensagens-gerais/submissao-e-liberdade/