"prometendo-lhes
a liberdade, quando eles
mesmos são
escravos da corrupção"
II
Pedro 2:19
A primeira respiração da guerra recém-nascida
foi dada assim que o velho rei soltou seu último suspiro. Dois exércitos, cada
um comandado por um dos filhos do falecido monarca, empreenderam uma guerra
triste, cansativa e renhida, que durou por vários meses, provocando a abertura
e o preenchimento de várias covas novas, espalhadas por todo o reino.
Finalmente, o filho mais novo do rei, Gustaff, assumiu a derrota de sua facção,
e, diante de todo o povo, ajoelhou-se diante do irmão mais velho, Rudolph, admitindo
a vitória de seu oponente, para alívio dos súditos vivos e total indiferença
daqueles que já haviam tombado.
Para a surpresa de ninguém, o
irmão derrotado implorou pela misericórdia do novo soberano. Poucos esperavam,
porém, a resposta dada pelo rei: ele não apenas poupou a vida do irmão caçula,
como o livrou do exílio eterno. A pena escolhida para ele foi a prisão
perpétua, que deveria ser cumprida no calabouço do castelo real, tradicional residência
da monarquia e sede do governo do reino.
Os meses que se seguiram ao fim
da guerra foram como todos os meses que se seguem aos fins das guerras: tempo
de enterrar os mortos, tratar feridas, trocar presentes, pedir donzelas em casamento
e engravidar esposas e noivas. A felicidade (que era mais um alívio do que
qualquer outra coisa) era tão palpável e presente em todo o reino, que o Rei
Rudolph I, o Misericordioso, em uma bela manhã de primavera, resolveu fazer uma
visita de cortesia ao irmão derrotado.
Gustaff não parecia muito diferente
de como o rei se lembrava. Estava mais magro, é certo, mas não esquelético, e
um pouco mais branco, afinal, o calabouço ficava no subsolo do castelo, longe
da luz solar. Mas parecia tranquilo, e ambos tiveram uma conversa amigável, em
que reconheceram erros e excessos cometidos por ambos os lados, e quase pediram
perdão um ao outro. Só não pediram porque não cabe aos reis e filhos de reis se
desculparem por coisa alguma. Ao final do encontro, o Rei perguntou se havia
algo que pudesse fazer para tornar a prisão de Gustaff mais tolerável. O irmão
caçula respondeu que a prisão não lhe era particularmente pesada, que estava
sendo bem tratado, tinha tudo de que necessitava e que, pra dizer a verdade, só
sentia mesmo falta de uma atividade que pudesse lhe ocupar os dias. E, já que o
rei havia perguntado, sugeriu que ele poderia, para passar melhor o tempo e
talvez ser útil para o povo, auxiliar em um trabalho que sempre o atraíra: a
atualização do Dicionário Oficial do Reino.
O pedido, de início, surpreendeu
o Rei Rudolph. Parecia um trabalho por demais subalterno para o irmão de um
rei, até mesmo para um irmão criminoso e condenado. Mas o pedido havia sido
feito com tanta simplicidade, e era tão fácil de ser concedido, que na semana seguinte
a cela estava lotada de papéis, penas, tinteiros e livros, e Gustaff já
trabalhava mais de 12 horas por dia no longo e tedioso ofício de atualizar o dicionário.
Metade de um ano havia se passado
quando chegou às mãos do rei a nova versão do Dicionário Oficial. Era trabalho
dos monarcas conferir todas as versões atualizadas do dicionário, já que só
depois da aprovação real elas podiam ser encaminhadas aos copistas, para então
chegarem às bibliotecas e aos responsáveis pelo ensino das crianças.
Obviamente, esse era um trabalho que os reis costumavam delegar, já que decerto
havia coisas mais importantes para um governante fazer do que ficar sentado
lendo um livro que quase ninguém jamais iria ler. Mas, como esse era a primeira versão criada
por seu querido e desgraçado irmão, o Rei Rudolph resolveu lê-la com atenção,
até mesmo para ter algum comentário para fazer em sua próxima visita. Ao passar
os olhos pelas centenas de páginas, o rei pouca coisa nova percebeu, mesmo
porque a leitura nunca havia sido um de seus passatempos preferidos. Algo,
porém, lhe chamou a atenção, o que ele fez questão de compartilhar com Gustaff.
"Notei que você fez uma pequena mudança no significado da palavra CAÇULA",
comentou, divertido. Gustaff pareceu surpreendido diante da observação e, com
os olhos baixos, começou a se justificar, "veja, foi apenas um adendo, não
alterei o sentido principal, que continua a ser FILHO MAIS NOVO", disse, gaguejando,
enquanto Rudolph lhe apontava a página onde, depois de FILHO MAIS NOVO,
aparecia a descrição, após o ponto-e-vírgula: HONRADO. Rudolph riu,
tranquilo, disse que não havia problema nenhum, e que realmente havia conhecido
muitos irmãos mais jovens que eram homens de grande honra, "inclusive
você", acrescentou, já saindo, e dizendo que mal podia esperar pelas novas
atualizações anuais do dicionário.
O que foi, é claro, uma grande
mentira, já que os afazeres reais impediram que o rei prestasse a mesma atenção
às versões seguintes feitas pelo irmão. Ele não notou, por exemplo, que, nos
anos que se seguiram, a palavra VENCEDOR adquiriu, além do sentido de GANHADOR
DE UMA GUERRA, o significado de TRAPACEIRO. O significado da palavra PRIMOGÊNITO
também passou por transformações: além de FILHO MAIS VELHO, queria dizer USURPADOR.
O significado de Rudolph foi outro que mudou: além de ser um NOME PRÓPRIO, também significava OPRESSOR. Durante esse
mesmo período, a expressão PERDEDOR passou a significar INJUSTIÇADO, e GUSTAFF
adquiriu o sentido de HERDEIRO LEGÍTIMO.
É necessário fazer uma observação
a respeito dos dicionários: embora não tenham muitos leitores, os poucos que os
leem influenciam os muitos que os ignoram. Entre aqueles que leem os
dicionários, por exemplo, estão os professores, que as crianças veem como
fontes inquestionáveis de sabedoria. Essas crianças, como sabemos, crescem, e
os ensinamentos que recebem passam a fazer parte dos adultos que se tornam.
Poetas, escritores e dramaturgos, todos esses, também leem dicionários, e o que
aprendem neles passa a habitar suas poesias, seus romances e suas peças para,
finalmente, morar no coração de seu público. Os bardos, músicos mendigos que
iam de taverna em taverna entoar canções que caçoavam ou elogiavam os
poderosos, em troca de comida, moedas ou aplausos, também liam esses livros
monótonos, e suas músicas repetiam os significados mutantes das palavras
dicionarizadas.
E foi assim que, ano após ano, a boa
vontade das massas aos poucos foi diminuindo em relação ao Rei Rudolph, sem que
este percebesse, e aumentando em relação a Gustaff, que aguardava com imensa
expectativa o que aconteceria quando sua décima versão do Dicionário chegasse
ao alcance do povo. Essa versão trazia apenas uma pequena diferença em relação
às outras: a expressão GOLPE havia
adquirido um único significado, JUSTIÇA. Poucos meses depois, uma multidão, formada
em sua maioria por jovens e adolescentes, invadia o Castelo Real, libertava
Gustaff do calabouço e o colocava no trono, ao som de músicas de protesto
cantadas e tocadas por dezenas de bardos e escritas pelos mais renomados poetas
do reino.
Recém-coroado, o novo rei,
Gustaff I, o Justo, viu-se na mesma situação em que estava dez anos atrás, mas
com uma diferença: agora era Rudolph quem lhe implorava clemência. Porém, três
anos antes, a palavra MISERICÓRDIA havia adquirido o significado de TOLICE, e
como Gustaff era um soberano inteligente, Rudolph foi decapitado pela PIEDADE
do rei (um dos novos significados da palavra MACHADO). O que se seguiu à
coroação foram vários anos de um reinado marcado pela GENEROSIDADE (que agora queria
dizer imposto) e pela BONDADE do novo soberano, que mandava cortar as gargantas
dos DEMÔNIOS (substantivo masculino. 1- SER DO INFERNO; 2- SERVO DO DIABO; 3- QUALQUER
UM QUE RECLAME PUBLICAMENTO DO REI) enquanto dormiam. O povo vivia dias de intensa FELICIDADE, mal
fechando os olhos à noite, acreditando que cada barulho do lado de fora podia significar
a chegada de enviados do rei para trazer DESCANSO, ou seja, uma execução real.
Mas havia um segredo para a
longevidade do reinado de Gustaff: ele nunca deixou de atualizar, pessoalmente,
o dicionário do reino. Dez anos depois de ser coroado, ele anunciou, com pompa
e circunstância, sua obra magna: a Versão Definitiva do Dicionário Oficial.
Nessa versão, a palavra REI passou a significar DEUS, GUSTAFF se tornou INVENCÍVEL,
e ESCRAVIDÃO passou a querer dizer LIBERDADE. Com o lançamento dessa versão,
Gustaff I, o Deus Invencível, libertou todo o seu povo, para sempre.
Para George Orwell