domingo, 29 de março de 2020

CONTO #7: SOBRE REIS E DICIONÁRIOS




  "prometendo-lhes a liberdade, quando eles
mesmos são escravos da corrupção"
II Pedro 2:19


A primeira respiração da guerra recém-nascida foi dada assim que o velho rei soltou seu último suspiro. Dois exércitos, cada um comandado por um dos filhos do falecido monarca, empreenderam uma guerra triste, cansativa e renhida, que durou por vários meses, provocando a abertura e o preenchimento de várias covas novas, espalhadas por todo o reino. Finalmente, o filho mais novo do rei, Gustaff, assumiu a derrota de sua facção, e, diante de todo o povo, ajoelhou-se diante do irmão mais velho, Rudolph, admitindo a vitória de seu oponente, para alívio dos súditos vivos e total indiferença daqueles que já haviam tombado.

Para a surpresa de ninguém, o irmão derrotado implorou pela misericórdia do novo soberano. Poucos esperavam, porém, a resposta dada pelo rei: ele não apenas poupou a vida do irmão caçula, como o livrou do exílio eterno. A pena escolhida para ele foi a prisão perpétua, que deveria ser cumprida no calabouço do castelo real, tradicional residência da monarquia e sede do governo do reino.

Os meses que se seguiram ao fim da guerra foram como todos os meses que se seguem aos fins das guerras: tempo de enterrar os mortos, tratar feridas, trocar presentes, pedir donzelas em casamento e engravidar esposas e noivas. A felicidade (que era mais um alívio do que qualquer outra coisa) era tão palpável e presente em todo o reino, que o Rei Rudolph I, o Misericordioso, em uma bela manhã de primavera, resolveu fazer uma visita de cortesia ao irmão derrotado.     

Gustaff não parecia muito diferente de como o rei se lembrava. Estava mais magro, é certo, mas não esquelético, e um pouco mais branco, afinal, o calabouço ficava no subsolo do castelo, longe da luz solar. Mas parecia tranquilo, e ambos tiveram uma conversa amigável, em que reconheceram erros e excessos cometidos por ambos os lados, e quase pediram perdão um ao outro. Só não pediram porque não cabe aos reis e filhos de reis se desculparem por coisa alguma. Ao final do encontro, o Rei perguntou se havia algo que pudesse fazer para tornar a prisão de Gustaff mais tolerável. O irmão caçula respondeu que a prisão não lhe era particularmente pesada, que estava sendo bem tratado, tinha tudo de que necessitava e que, pra dizer a verdade, só sentia mesmo falta de uma atividade que pudesse lhe ocupar os dias. E, já que o rei havia perguntado, sugeriu que ele poderia, para passar melhor o tempo e talvez ser útil para o povo, auxiliar em um trabalho que sempre o atraíra: a atualização do Dicionário Oficial do Reino.

O pedido, de início, surpreendeu o Rei Rudolph. Parecia um trabalho por demais subalterno para o irmão de um rei, até mesmo para um irmão criminoso e condenado. Mas o pedido havia sido feito com tanta simplicidade, e era tão fácil de ser concedido, que na semana seguinte a cela estava lotada de papéis, penas, tinteiros e livros, e Gustaff já trabalhava mais de 12 horas por dia no longo e tedioso ofício de atualizar o dicionário.

Metade de um ano havia se passado quando chegou às mãos do rei a nova versão do Dicionário Oficial. Era trabalho dos monarcas conferir todas as versões atualizadas do dicionário, já que só depois da aprovação real elas podiam ser encaminhadas aos copistas, para então chegarem às bibliotecas e aos responsáveis pelo ensino das crianças. Obviamente, esse era um trabalho que os reis costumavam delegar, já que decerto havia coisas mais importantes para um governante fazer do que ficar sentado lendo um livro que quase ninguém jamais iria ler.  Mas, como esse era a primeira versão criada por seu querido e desgraçado irmão, o Rei Rudolph resolveu lê-la com atenção, até mesmo para ter algum comentário para fazer em sua próxima visita. Ao passar os olhos pelas centenas de páginas, o rei pouca coisa nova percebeu, mesmo porque a leitura nunca havia sido um de seus passatempos preferidos. Algo, porém, lhe chamou a atenção, o que ele fez questão de compartilhar com Gustaff. "Notei que você fez uma pequena mudança no significado da palavra CAÇULA", comentou, divertido. Gustaff pareceu surpreendido diante da observação e, com os olhos baixos, começou a se justificar, "veja, foi apenas um adendo, não alterei o sentido principal, que continua a ser FILHO MAIS NOVO", disse, gaguejando, enquanto Rudolph lhe apontava a página onde, depois de FILHO MAIS NOVO, aparecia a descrição, após o ponto-e-vírgula: HONRADO. Rudolph riu, tranquilo, disse que não havia problema nenhum, e que realmente havia conhecido muitos irmãos mais jovens que eram homens de grande honra, "inclusive você", acrescentou, já saindo, e dizendo que mal podia esperar pelas novas atualizações anuais do dicionário.

O que foi, é claro, uma grande mentira, já que os afazeres reais impediram que o rei prestasse a mesma atenção às versões seguintes feitas pelo irmão. Ele não notou, por exemplo, que, nos anos que se seguiram, a palavra VENCEDOR adquiriu, além do sentido de GANHADOR DE UMA GUERRA, o significado de TRAPACEIRO. O significado da palavra PRIMOGÊNITO também passou por transformações: além de FILHO MAIS VELHO, queria dizer USURPADOR. O significado de Rudolph foi outro que mudou: além de ser um NOME PRÓPRIO,  também significava OPRESSOR. Durante esse mesmo período, a expressão PERDEDOR passou a significar INJUSTIÇADO, e GUSTAFF adquiriu o sentido de HERDEIRO LEGÍTIMO.

É necessário fazer uma observação a respeito dos dicionários: embora não tenham muitos leitores, os poucos que os leem influenciam os muitos que os ignoram. Entre aqueles que leem os dicionários, por exemplo, estão os professores, que as crianças veem como fontes inquestionáveis de sabedoria. Essas crianças, como sabemos, crescem, e os ensinamentos que recebem passam a fazer parte dos adultos que se tornam. Poetas, escritores e dramaturgos, todos esses, também leem dicionários, e o que aprendem neles passa a habitar suas poesias, seus romances e suas peças para, finalmente, morar no coração de seu público. Os bardos, músicos mendigos que iam de taverna em taverna entoar canções que caçoavam ou elogiavam os poderosos, em troca de comida, moedas ou aplausos, também liam esses livros monótonos, e suas músicas repetiam os significados mutantes das palavras dicionarizadas.

E foi assim que, ano após ano, a boa vontade das massas aos poucos foi diminuindo em relação ao Rei Rudolph, sem que este percebesse, e aumentando em relação a Gustaff, que aguardava com imensa expectativa o que aconteceria quando sua décima versão do Dicionário chegasse ao alcance do povo. Essa versão trazia apenas uma pequena diferença em relação às outras: a expressão GOLPE  havia adquirido um único significado, JUSTIÇA. Poucos meses depois, uma multidão, formada em sua maioria por jovens e adolescentes, invadia o Castelo Real, libertava Gustaff do calabouço e o colocava no trono, ao som de músicas de protesto cantadas e tocadas por dezenas de bardos e escritas pelos mais renomados poetas do reino.

Recém-coroado, o novo rei, Gustaff I, o Justo, viu-se na mesma situação em que estava dez anos atrás, mas com uma diferença: agora era Rudolph quem lhe implorava clemência. Porém, três anos antes, a palavra MISERICÓRDIA havia adquirido o significado de TOLICE, e como Gustaff era um soberano inteligente, Rudolph foi decapitado pela PIEDADE do rei (um dos novos significados da palavra MACHADO). O que se seguiu à coroação foram vários anos de um reinado marcado pela GENEROSIDADE (que agora queria dizer imposto) e pela BONDADE do novo soberano, que mandava cortar as gargantas dos DEMÔNIOS (substantivo masculino. 1- SER DO INFERNO; 2- SERVO DO DIABO; 3- QUALQUER UM QUE RECLAME PUBLICAMENTO DO REI) enquanto dormiam. O povo vivia dias de intensa FELICIDADE, mal fechando os olhos à noite, acreditando que cada barulho do lado de fora podia significar a chegada de enviados do rei para trazer DESCANSO, ou seja, uma execução real.

Mas havia um segredo para a longevidade do reinado de Gustaff: ele nunca deixou de atualizar, pessoalmente, o dicionário do reino. Dez anos depois de ser coroado, ele anunciou, com pompa e circunstância, sua obra magna: a Versão Definitiva do Dicionário Oficial. Nessa versão, a palavra REI passou a significar DEUS, GUSTAFF se tornou INVENCÍVEL, e ESCRAVIDÃO passou a querer dizer LIBERDADE. Com o lançamento dessa versão, Gustaff I, o Deus Invencível, libertou todo o seu povo, para sempre.   

Para George Orwell

domingo, 22 de março de 2020

O EFEITO ÁGABO – A Igreja e as crises globais





O livro de Atos nos relata a vez em que o profeta Ágabo previu, pelo Espírito, que uma grande fome viria sobre todo o mundo. Essa profecia se cumpriu alguns anos depois. Antes disso, porém, com base nessa previsão, os cristãos juntaram recursos financeiros para socorrer os irmãos que sofreriam com essa fome na região da Judeia.

É curioso perceber que a igreja, ao receber o alerta do profeta, não se uniu em oração para repreender a tal fome. O motivo eu desconheço. Talvez o profeta tenha recebido, junto com a profecia, a revelação de que a situação não poderia ser mudada com orações. Ainda assim, havia um propósito na previsão: que os irmãos se preparassem para ajudar as pessoas que viriam a sentir o impacto da fome. Provavelmente, os mais pobres.

A Igreja de hoje, em todo o mundo, está diante de uma realidade que guarda similaridades com aquela descrita em Atos. Uma emergência de amplitude global, que está trazendo consequências para praticamente cada pessoa na face da terra. Devemos orar, é claro. Mas será que não está na hora de fazermos algo além? A Igreja, ao longo da história, tem marcado o mundo através do acolhimento aos necessitados, daqueles que se encontram em situação de total desamparo. É por isso que a Igreja criou santas casas de misericórdia, orfanatos e leprosários. É por isso que tivemos São Francisco de Assis e Madre Tereza de Calcutá.

Esse é um momento em que o mundo precisa não só de respostas, mas também de ajuda. As previsões mais otimistas indicam que teremos não só mais desemprego em um futuro próximo, mas também que o poder de compra de grande parte da população vai diminuir drasticamente durante alguns meses. Talvez seja o momento da Igreja agir mais como Igreja, tocando um mundo assustado e necessitado com boas obras. Historicamente, a Igreja costuma funcionar melhor quando olha pra fora, ao invés de apenas para dentro. Existe a oportunidade de sermos uma bênção ainda maior para o mundo, sendo Jesus na vida de muitas pessoas. Iremos aproveitá-la?