A reunião transcorria normalmente
no último andar do prédio que servia de sede para uma importante multinacional que
tinha como principal ramo de atividades o desenvolvimento de aplicativos para
celular. Quando o CEO da empresa entrou na sala, os executivos e executivas, devidamente
engravatados, pararam imediatamente de conversar. Todos tinham os olhos fitos nele
quando o homem se sentou calmamente na cabeceira da comprida mesa de reuniões
e, com um sinal de cabeça, ordenou que as luzes fossem apagadas. Quase imediatamente
surgiu, em um telão de LED localizadas às suas costas, as letras “C.E.U.”.
“Isso, senhores e senhoras, é o
nome do novo produto que estivemos desenvolvendo em segredo nos últimos 18 meses.
Temos plena confiança de que será um sucesso fenomenal, e esperamos que, em breve,
ele se torne o carro-chefe de nossa empresa”, anunciou, sorridente e
enigmático, enquanto passeava o olhar entre os presentes. “Para explicar melhor
o nosso novo lançamento, gostaria de chamar o Almeidinha”. Imediatamente um
rapaz franzino, que parecia vestir o terno de um parente mais velho (e mais gordo),
se levantou e, parando em frente ao telão, começou a falar com uma voz levemente
aguda, como a de alguém que ainda estivesse lutando com as transformações da puberdade:
- C.E.U. é uma sigla para Centro de
Entretenimento Universal. Trata-se de uma plataforma totalmente interativa,
colorida, que se estenderá de maneira ilimitada sobre a cabeça do usuário, em
uma amplitude de 360º. Para dar uma ideia melhor da utilização da nossa plataforma,
irei apresentar a vocês os nossos produtos principais, que chamamos de “eventos”.
O primeiro evento, denominado “nascer do sol” ou “alvorada”, será transmitido
todos os dias, entre 5 e 6 horas da manhã. Trata-se de um grande espetáculo visual,
em que diversas cores tomam conta da plataforma, formando imagens absolutamente
impressionantes, para o deleite dos usuários. O evento terá uma duração aproximada
de uma hora, e, o mais importante, será sempre inédito, nunca repetindo o padrão
de imagens e cores. O segundo evento diário, que gostamos de chamar de “pôr do
sol” ou, simplesmente, “crepúsculo”, é similar ao primeiro, mas acontecerá em
um horário diferente, entre 17 e 18 horas. Até aqui, alguma pergunta?
Levou alguns segundos para que um
dos executivos (no caso, a vice-presidente executiva do setor de Marketing) quebrasse
o silêncio absoluto: “Eu tenho um problema com relação a esses eventos. Se eu
entendi bem, você disse que eles seriam transmitidos sempre no mesmo horário. Bem,
as recentes pesquisas de mercado indicam que esse tipo de oferta está ultrapassado.
Os serviços de streaming mostram que o consumidor aprendeu a estar no poder, ou
seja, ele escolhe a hora de consumir. Um produto desses vai contra todas as recentes
leis do mercado. Não é possível mudar isso, ou pelo menos vendermos um pacote
premium, em que o usuário possa escolher a hora em que vai consumir essa “alvorada”
e esse “prepúcio”?
- “Crepúsculo” – corrigiu Almeidinha,
ajeitando os óculos. – Infelizmente, essa não é uma opção. As transmissões só
poderão ser feitas nos horários determinados.
- Uma outra pergunta – disse,
levantando uma das mãos, o diretor-geral de Relações Internacionais – e durante
o resto do dia? O que fará com que os consumidores utilizem nosso produto
durante as horas “entre-eventos”?
- Para isso, contamos com algo
que o nosso departamento de criação batizou de “nuvens”.
- “Nuvens”? – questionou a supervisora-chefe
de Novas Mídias.
- São corpos flutuantes, de tamanhos
variados, quase sempre brancos, que estão em constante movimento por toda a
plataforma. O interessante é que estas “nuvens” estão sempre mudando de forma,
além de se fundirem e se separarem várias vezes por hora. Ao fazer isso, elas
formam as mais variadas figuras, como animais, pessoas e objetos. Nossos testes
com crianças demonstram que elas podem ficar horas, todos os dias, adivinhando formas
no painel formado por essas “nuvens”. Além disso, o algoritmo que utilizamos
garante que as formas nunca se repitam, nem por uma única vez.
- E durante a noite? – perguntou a
diretora de Assuntos Estratégicos – A falta de iluminação não irá prejudicar a visualização
das nuvens?
- Em parte, sim – explicou Almeidinha,
esboçando um leve sorriso – mas, para o período noturno, desenvolvemos um outro
produto, que chamamos de “estrelas”. São pequenos pontos luminosos, de tamanhos
e intensidades diferentes, que ficam ativos durante toda a noite. Os usuários
podem usar sua imaginação para “ligar os pontinhos”, formando diversas imagens,
com possibilidades de combinações infinitas. Nossas pesquisas de satisfação
demonstraram que o produto será muito popular entre crianças e casais de namorados.
- Tudo está parecendo muito bom –
começou o diretor-executivo responsável pela área de Aquisições – mas estou
percebendo um problema aí. A utilização do produto certamente ficará
comprometida nos dias chuvosos, já que ninguém vai querer se molhar para ficar
vendo esse “C.E.U.”.
- Já pensamos nisso. Para manter
o interesse dos usuários durante a chuva criamos um moderno e tecnológico show
de luzes, que batizamos de “relâmpagos”, ou “raios”. São flashs gigantescos que
causam uma sensação de desorientação nos consumidores, mesmo quando estão
dentro de casa. Para que o efeito seja completo, os “relâmpagos” são acompanhados
por estrondos muito altos, que o setor de criação chamou de “trovões”. Os barulhos
são tão altos que se tornam impossíveis de ignorar.
- Mas esse tipo de produto pode
ser um pouco ofensivo para alguns usuários, não acham? – indagou a responsável
pelo Jurídico, já pensando nos possíveis processos – Como impedir que as crianças
fiquem traumatizadas com esse tipo de abordagem?
- Talvez – começou a dizer,
timidamente, um estagiário chamado Irisberto, que só estava ali para trazer
café – poderíamos liberar, depois das chuvas, uma espécie de semi-círculo formado
por várias cores, que iria preencher o plano de fundo da plataforma. Pode ser
uma maneira de consolar os mais novos.
Imediatamente, todos os presentes
começaram a gargalhar diante da ideia absurda. Almeidinha, depois de se controlar,
disse, apenas por educação, que a sugestão estava anotada e que iriam trabalhar
nela.
- Pois bem, agora vocês já
conhecem a ideia geral do produto. Podemos passar para as dúvidas?
- Acho que a principal pergunta
aqui é: qual será o preço desse produto? – perguntou, claro, o
diretor-financeiro.
- Bom, a ideia é que ele seja
disponibilizado gratuitamente para todos. É por isso que ele carrega a palavra “Universal”
no nome.
- Então poderá ser baixado para
qualquer sistema operacional?
- Não, não – começou a responder
o Almeidinha, agora bem mais relaxado, já que a apresentação havia sido
concluída – não será baixado para celulares ou computadores. Ele estará
disponível para visualização em qualquer lugar do mundo, a qualquer hora, por
qualquer pessoa.
- Então, como poderemos lucrar
com ele? – questionou, séria, a
supervisora de Vendas – Vamos vender espaço para publicidade?
- Bom, foram feitos alguns testes
com a utilização de dirigíveis e aviões com faixas, mas nada se mostrou particularmente
eficaz. Na maior parte do tempo, o C.E.U. será exibido sem comerciais.
- Mas, isso não parece fazer
sentido – murmurou, incrédulo, o vice-presidente de Expansão – um produto
desses, com essa qualidade, disponível gratuitamente e 24 horas por dia, sem
publicidade e sem assinaturas premium? Como vamos impedir que esse “C.E.U.” roube
a atenção de todos? Como vamos fazer para que os outros aplicativos de celular
continuem a ser utilizados? Parece um tiro no pé lançar algo assim.
Nesse momento o CEO, que ficara
em silêncio durante toda a apresentação, se levantou repentinamente. Todos o acompanharam
com o olhar enquanto ele se dirigiu para a janela da sala de reuniões, que estava
com as amplas persianas fechadas.
- Acho que vocês precisam ver o
produto em funcionamento para terem uma ideia real de suas possibilidades. Vou apresentar
para vocês uma versão beta do “C.E.U.”. Apenas mantenham em mente que a versão
final será uma plataforma bem mais ampla, se estendendo em 360º até o infinito.
Dito isso, o CEO abriu as
persianas, revelando aos presentes uma visão maravilhosa, absurdamente azul e
cheia de grandes corpos brancos flutuantes, que aparentavam uma textura de
algodão-doce. “Isso, meus amigos, é o C.E.U.”.
Todos ficaram maravilhados, e
começaram lentamente a se aproximar do grande vidro transparente que os
separava do mundo exterior. De repente, o diretor-financeiro, um senhor de meia
idade que raramente sorria, começou a chorar, soluçando.
- O que aconteceu, Ferreira? –
perguntou, paternal, o CEO, já preparado para esse tipo de reação.
- Acho...acho que estou
enxergando um coelho – respondeu, apontando para um pequeno corpo branco que
flutuava suavemente, com uma textura que lembrava demais a de um algodão-doce.