quarta-feira, 3 de outubro de 2018

CONTO #6: C.E.U.






A reunião transcorria normalmente no último andar do prédio que servia de sede para uma importante multinacional que tinha como principal ramo de atividades o desenvolvimento de aplicativos para celular. Quando o CEO da empresa entrou na sala, os executivos e executivas, devidamente engravatados, pararam imediatamente de conversar. Todos tinham os olhos fitos nele quando o homem se sentou calmamente na cabeceira da comprida mesa de reuniões e, com um sinal de cabeça, ordenou que as luzes fossem apagadas. Quase imediatamente surgiu, em um telão de LED localizadas às suas costas, as letras “C.E.U.”.

“Isso, senhores e senhoras, é o nome do novo produto que estivemos desenvolvendo em segredo nos últimos 18 meses. Temos plena confiança de que será um sucesso fenomenal, e esperamos que, em breve, ele se torne o carro-chefe de nossa empresa”, anunciou, sorridente e enigmático, enquanto passeava o olhar entre os presentes. “Para explicar melhor o nosso novo lançamento, gostaria de chamar o Almeidinha”. Imediatamente um rapaz franzino, que parecia vestir o terno de um parente mais velho (e mais gordo), se levantou e, parando em frente ao telão, começou a falar com uma voz levemente aguda, como a de alguém que ainda estivesse lutando com as transformações da puberdade:

- C.E.U. é uma sigla para Centro de Entretenimento Universal. Trata-se de uma plataforma totalmente interativa, colorida, que se estenderá de maneira ilimitada sobre a cabeça do usuário, em uma amplitude de 360º. Para dar uma ideia melhor da utilização da nossa plataforma, irei apresentar a vocês os nossos produtos principais, que chamamos de “eventos”. O primeiro evento, denominado “nascer do sol” ou “alvorada”, será transmitido todos os dias, entre 5 e 6 horas da manhã. Trata-se de um grande espetáculo visual, em que diversas cores tomam conta da plataforma, formando imagens absolutamente impressionantes, para o deleite dos usuários. O evento terá uma duração aproximada de uma hora, e, o mais importante, será sempre inédito, nunca repetindo o padrão de imagens e cores. O segundo evento diário, que gostamos de chamar de “pôr do sol” ou, simplesmente, “crepúsculo”, é similar ao primeiro, mas acontecerá em um horário diferente, entre 17 e 18 horas. Até aqui, alguma pergunta?



Levou alguns segundos para que um dos executivos (no caso, a vice-presidente executiva do setor de Marketing) quebrasse o silêncio absoluto: “Eu tenho um problema com relação a esses eventos. Se eu entendi bem, você disse que eles seriam transmitidos sempre no mesmo horário. Bem, as recentes pesquisas de mercado indicam que esse tipo de oferta está ultrapassado. Os serviços de streaming mostram que o consumidor aprendeu a estar no poder, ou seja, ele escolhe a hora de consumir. Um produto desses vai contra todas as recentes leis do mercado. Não é possível mudar isso, ou pelo menos vendermos um pacote premium, em que o usuário possa escolher a hora em que vai consumir essa “alvorada” e esse “prepúcio”?

- “Crepúsculo” – corrigiu Almeidinha, ajeitando os óculos. – Infelizmente, essa não é uma opção. As transmissões só poderão ser feitas nos horários determinados.

- Uma outra pergunta – disse, levantando uma das mãos, o diretor-geral de Relações Internacionais – e durante o resto do dia? O que fará com que os consumidores utilizem nosso produto durante as horas “entre-eventos”?

- Para isso, contamos com algo que o nosso departamento de criação batizou de “nuvens”.

- “Nuvens”? – questionou a supervisora-chefe de Novas Mídias.

- São corpos flutuantes, de tamanhos variados, quase sempre brancos, que estão em constante movimento por toda a plataforma. O interessante é que estas “nuvens” estão sempre mudando de forma, além de se fundirem e se separarem várias vezes por hora. Ao fazer isso, elas formam as mais variadas figuras, como animais, pessoas e objetos. Nossos testes com crianças demonstram que elas podem ficar horas, todos os dias, adivinhando formas no painel formado por essas “nuvens”. Além disso, o algoritmo que utilizamos garante que as formas nunca se repitam, nem por uma única vez.



- E durante a noite? – perguntou a diretora de Assuntos Estratégicos – A falta de iluminação não irá prejudicar a visualização das nuvens?

- Em parte, sim – explicou Almeidinha, esboçando um leve sorriso – mas, para o período noturno, desenvolvemos um outro produto, que chamamos de “estrelas”. São pequenos pontos luminosos, de tamanhos e intensidades diferentes, que ficam ativos durante toda a noite. Os usuários podem usar sua imaginação para “ligar os pontinhos”, formando diversas imagens, com possibilidades de combinações infinitas. Nossas pesquisas de satisfação demonstraram que o produto será muito popular entre crianças e casais de namorados.



- Tudo está parecendo muito bom – começou o diretor-executivo responsável pela área de Aquisições – mas estou percebendo um problema aí. A utilização do produto certamente ficará comprometida nos dias chuvosos, já que ninguém vai querer se molhar para ficar vendo esse “C.E.U.”.

- Já pensamos nisso. Para manter o interesse dos usuários durante a chuva criamos um moderno e tecnológico show de luzes, que batizamos de “relâmpagos”, ou “raios”. São flashs gigantescos que causam uma sensação de desorientação nos consumidores, mesmo quando estão dentro de casa. Para que o efeito seja completo, os “relâmpagos” são acompanhados por estrondos muito altos, que o setor de criação chamou de “trovões”. Os barulhos são tão altos que se tornam impossíveis de ignorar.

- Mas esse tipo de produto pode ser um pouco ofensivo para alguns usuários, não acham? – indagou a responsável pelo Jurídico, já pensando nos possíveis processos – Como impedir que as crianças fiquem traumatizadas com esse tipo de abordagem?

- Talvez – começou a dizer, timidamente, um estagiário chamado Irisberto, que só estava ali para trazer café – poderíamos liberar, depois das chuvas, uma espécie de semi-círculo formado por várias cores, que iria preencher o plano de fundo da plataforma. Pode ser uma maneira de consolar os mais novos.

Imediatamente, todos os presentes começaram a gargalhar diante da ideia absurda. Almeidinha, depois de se controlar, disse, apenas por educação, que a sugestão estava anotada e que iriam trabalhar nela.




- Pois bem, agora vocês já conhecem a ideia geral do produto. Podemos passar para as dúvidas?

- Acho que a principal pergunta aqui é: qual será o preço desse produto? – perguntou, claro, o diretor-financeiro.

- Bom, a ideia é que ele seja disponibilizado gratuitamente para todos. É por isso que ele carrega a palavra “Universal” no nome.

- Então poderá ser baixado para qualquer sistema operacional?

- Não, não – começou a responder o Almeidinha, agora bem mais relaxado, já que a apresentação havia sido concluída – não será baixado para celulares ou computadores. Ele estará disponível para visualização em qualquer lugar do mundo, a qualquer hora, por qualquer pessoa.

- Então, como poderemos lucrar com ele?  – questionou, séria, a supervisora de Vendas – Vamos vender espaço para publicidade?

- Bom, foram feitos alguns testes com a utilização de dirigíveis e aviões com faixas, mas nada se mostrou particularmente eficaz. Na maior parte do tempo, o C.E.U. será exibido sem comerciais.

- Mas, isso não parece fazer sentido – murmurou, incrédulo, o vice-presidente de Expansão – um produto desses, com essa qualidade, disponível gratuitamente e 24 horas por dia, sem publicidade e sem assinaturas premium? Como vamos impedir que esse “C.E.U.” roube a atenção de todos? Como vamos fazer para que os outros aplicativos de celular continuem a ser utilizados? Parece um tiro no pé lançar algo assim.

Nesse momento o CEO, que ficara em silêncio durante toda a apresentação, se levantou repentinamente. Todos o acompanharam com o olhar enquanto ele se dirigiu para a janela da sala de reuniões, que estava com as amplas persianas fechadas.

- Acho que vocês precisam ver o produto em funcionamento para terem uma ideia real de suas possibilidades. Vou apresentar para vocês uma versão beta do “C.E.U.”. Apenas mantenham em mente que a versão final será uma plataforma bem mais ampla, se estendendo em 360º até o infinito.

Dito isso, o CEO abriu as persianas, revelando aos presentes uma visão maravilhosa, absurdamente azul e cheia de grandes corpos brancos flutuantes, que aparentavam uma textura de algodão-doce. “Isso, meus amigos, é o C.E.U.”.

Todos ficaram maravilhados, e começaram lentamente a se aproximar do grande vidro transparente que os separava do mundo exterior. De repente, o diretor-financeiro, um senhor de meia idade que raramente sorria, começou a chorar, soluçando.

- O que aconteceu, Ferreira? – perguntou, paternal, o CEO, já preparado para esse tipo de reação.

- Acho...acho que estou enxergando um coelho – respondeu, apontando para um pequeno corpo branco que flutuava suavemente, com uma textura que lembrava demais a de um algodão-doce.