quarta-feira, 22 de agosto de 2018

JESUS - O MAIOR COMEDIANTE QUE JÁ EXISTIU





Muito popular nos Estados Unidos desde a década de 1970, a comédia stand-up (chamada também de "comédia cara limpa" no Brasil) é caracterizada por apresentar um humor que não envolve piadas, imitações e nem personagens. Os comediantes de stand-up se apresentam sozinhos no palco, vestidos normalmente, utilizando apenas um microfone. Os grandes mestres do gênero têm como principal virtude perceber e expor os aspectos absurdos das coisas que fazemos todos os dias, provocando assim o riso e a reflexão da plateia. Esse tipo de humor coincide, de certa forma, com a definição do escritor George Orwell: “o objetivo da piada não é degradar o ser humano, mas lembrar que ele já é degradado".  O humor, teria, portanto, essa missão de expor para nós mesmos o quanto somos ridículos, abrindo nossos olhos no processo.

É dentro dessa perspectiva que podemos encarar a presença do humor nos discursos de Jesus. Não se trata de dizer que o Sermão da Montanha seja o "maior show de stand-up da história" (embora essa fosse uma afirmação engraçada), mas é possível perceber como Jesus utilizava o humor em seus ensinamentos para nos mostrar como muitas das atitudes e pensamentos que encaramos como normais são na verdade absurdos, quando comparados à Verdade que Cristo veio revelar aos homens.
A utilização do humor como instrumento de reflexão na Bíblia certamente não começou em Jesus. No Velho Testamento, podemos encontrar alguns exemplos de homens de Deus usando o humor para demonstrar o absurdo da idolatria, por exemplo. É famosa (e divertida) a passagem em que Elias confronta os profetas de Baal e usa o deboche para demonstrar (nem tanto para os oponentes, mas para o público que acompanhava a disputa) que o deus fenício não era o Deus verdadeiro. Ao ver os profetas clamando, inutilmente, pela resposta do falso deus, Elias "sugere" que talvez ele não esteja respondendo por estar "meditando, ou ocupado, ou viajando. Talvez esteja dormindo e precise ser despertado" (I Reis 18:27). Imagino que a "plateia" deve ter dado muitas risadas ao assistir o espetáculo, além de sair com a convicção de que Baal não passava de uma fraude.

O profeta Isaías também usou o humor para demonstrar o absurdo da adoração aos ídolos. Ele ilustra esse argumento com a figura de um homem que derruba uma árvore e utiliza parte da madeira para fazer uma fogueira e se aquecer. Com o restante da madeira ele constrói um ídolo, se prostra diante dele e declara: "Salva-me; tu és meu deus" (Isaías 44:17). Colocado dessa forma, é realmente ridícula a ideia de um pedaço de madeira, que por pouco não foi parar no fogo, ser adorada pelo próprio homem que derrubou a árvore e moldou o ídolo. Isaías consegue, assim, utilizar o humor para expor o erro e provocar a reflexão. 

Chegando em Jesus e em seu Sermão da Montanha, percebemos que o alvo de seu humor é, justamente, aquilo que costuma roubar o nosso humor: as preocupações dessa vida. O Mestre faz uma pergunta muito simples: "Quem de vocês, por mais que se preocupe, pode acrescentar uma hora que seja à sua vida?" (Lucas 12:25) Jesus expõe, assim, o ridículo (e a inutilidade) de se preocupar. De fato, por mais que nos preocupemos, não conseguimos mudar as coisas mais simples da vida. Isso fica ainda mais claro na declaração de Jesus encontrada no versículo seguinte: "Visto que vocês não podem sequer fazer uma coisa tão pequena, por que se preocupar com o restante?" Talvez essa fala de Jesus não tenha provocado gargalhadas, mas certamente alguém que ouvia o sermão deve ter dado um largo sorriso ao entender a declaração e verificar o quanto era ridículo e absurdo ficar preocupado.

Para ilustrar ainda mais a falta de sentido das preocupações, Jesus utiliza as figuras dos pássaros e das plantas, mostrando que não havia sentido algum em pensar que o Deus Pai gastaria todos os seus esforços cuidando de flores e animais e negligenciando os seres humanos. Outras figuras de linguagem usadas por Jesus também traziam sua graça (o cego que guiava o outro pela mão, o homem ostentando uma trave no olho e pedindo para tirar o cisco no olho de seu próximo), mas sempre com o mesmo objetivo: revelar a loucura que é a vida vivida fora da vontade de Deus. Jesus enxergava as coisas como elas são, já que as ilusões do mundo presente não o enganavam. Diante desse quadro, o nosso Mestre utilizou uma linguagem simples e bem-humorada para se aproximar daqueles que o ouviam, com o objetivo de trazer reflexão e luz. E, nesse processo, levou (e ainda tem levado) multidões a conhecerem a verdadeira alegria.

Quando leio o Sermão da Montanha ou outro discurso de Jesus, tento, apenas como exercício, imaginar não um ambiente sério, grave, com as pessoas em silêncio absoluto prestando atenção naquelas palavras ditas pelo Salvador. Tento imaginar um ambiente alegre, descontraído, com as pessoas fazendo comentários e reagindo, ora com sorrisos, ora com assombro, às palavras ditas pelo Mestre. Talvez seja também por isso que o evangelho afirma que as multidões ficavam "maravilhadas com o seu ensino, porque ele as ensinava como quem tem autoridade, e não como os mestres da lei" (Mateus 7:28-29).


   

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

A HISTÓRIA DA BC COMICS





O presente artigo tem como objetivo abordar um pouco da história da BC Comics, editora de histórias em quadrinhos (no original, comics; em Portugal, banda desenhada) criada em 1961, com a publicação de sua primeira revista e carro-chefe, Rei Davi (King David). Porém, para falar de seu surgimento e crescimento extraordinário na indústria, é necessário, antes, abordar a editora que era, até então, a dominante no mercado de histórias em quadrinhos bíblicas, a AD Comics.

A AD Comics, como se sabe, era uma editora focada em histórias bíblicas que retratavam personagens do Novo Testamento (daí o seu nome, uma alusão a A.D., ou Anno Domini). Seu carro-chefe, desde o fim dos anos 1930, era a revista Acts Comics (“quadrinhos de atos”, em referência ao livro bíblico Atos dos Apóstolos), que retratava, através de várias histórias curtas, as aventuras dos doze apóstolos de Cristo ocorridas após Sua morte e ressurreição, mesclando relatos contidos na bíblia com narrativas históricas, da tradição, apócrifas e mesmo algumas totalmente fictícias, mas sempre trazendo uma “moral” para os seus leitores.


Foi na Acts Comics que surgiu aquele que, até hoje, é o personagem mais popular da editora: o Apóstolo Paulo, que, em poucos anos, ganhou revista própria (Paul, the Apostle #1 é de março de 1941) e, posteriormente, deu origem à série derivada Thrilling Travels of Paul and Barnabas, que estreou em 1943, apresentando o popular sidekick de Paulo, o bondoso Barnabé; na edição 50, de 1947, o título teve seu nome mudado para Terrific Travels of Paul and Silas, com a estreia do novo parceiro de aventuras de Paulo, o valente Silas.

No início dos anos 1950, o personagem continua a ser um sucesso estrondoso, e chega a migrar para outros estilos. Em outubro-novembro de 1952, por exemplo, foi lançada a primeira edição de Paul and John Mark (algumas vezes, John and Paul Mark, ou Paul and Mark John, ou ainda Mark and Mark and Mark) uma experiência absolutamente anárquica de Harvey Kurtzman, que retrata o jovem ajudante de Paulo, João Marcos, como um adolescente mimado, preguiçoso e medroso, que traz várias dores de cabeças para seu tio, o exageradamente paciente e permissivo Barnabé, e o estourado Paulo. A revista foi um sucesso até seu cancelamento, em 1956, motivado pelos vários problemas que enfrentou com a censura.


Outra revista que foi um enorme sucesso, mas também penou nas mãos dos censores, foi Saul, the Zealous (Saulo, o zeloso), que mostrava a vida de Paulo em seus dias pré-conversão, quando ainda era chamado de Saulo e perseguia e matava cristãos provenientes do judaísmo. A revista estreou em 1950 e seguia a linha das várias publicações focadas em crimes e que faziam um sucesso arrasador no início daquela década. As histórias traziam Saulo como um personagem cruel, manipulador, e muitas vezes eram focadas em suas vítimas, cristãos inocentes que se viam perseguidos durante toda a trama pela sinistra figura do jovem fariseu. Normalmente, terminavam com a morte ou prisão das pobres vítimas. Mais ou menos na mesma época surgiu Terrifying Torments of Martyrs (1950-1955), que, como o próprio nome diz, era focado nas mortes dos primeiros cristãos. O título, porém, dava atenção excessiva à crueldade e aos detalhes gráficos das torturas infligidas aos cristãos (a maioria delas, fruto da imaginação dos criativos escritores e desenhistas que passaram pela publicação). Não é surpresa, portanto, entender porque todos esses títulos foram cancelados em meados dos anos 1950, como consequência direta da publicação do livro Seduction of the Innocent (Sedução dos Inocentes), do psiquiatra alemão Fredric Wertham, lançado em 1954 e que defendia a tese que as revistas em quadrinhos incentivavam a delinquência juvenil.


Tudo isso foi um grande baque para a AD Comics, que foi obrigada a cancelar vários títulos e a se reinventar em meados dos anos 1950, como veremos no capítulo seguinte.

ERA DE PRATA

Como pudemos perceber, a outrora todo poderosa AD Comics entrou na segunda metade da década de 1950 precisando mudar para sobreviver. E foi exatamente o que ela fez! De uma forma ousada, o editor principal da época, Julius Schwartz, revolucionou o principal título da editora, Acts Comics, acrescentando a ele a palavra “now”. Assim, a publicação deixou de abordar as histórias dos primeiros apóstolos e se concentrou em evangelistas atuando nos tempos modernos e ajudando jovens a se livrar das drogas e da promiscuidade, tudo dentro de uma abordagem moralista e cristã.

Assim, em outubro de 1956 estreou a revista Acts Now, que foi um sucesso instantâneo e deu início oficial à chamada Era de Prata dos quadrinhos cristãos. Exatamente três anos depois, em 1959, outro título clássico da AD Comics ganhou sua reformulação: Paul, the Apostle teve seu nome mudado para Paul in the Third Heaven (Paulo no terceiro céu). O título, absolutamente lisérgico, se concentrava nas experiências extracorpóreas de Paulo, descritas brevemente em II Coríntios 12. Com muita imaginação e utilizando todas as cores possíveis, o artista e escritor principal da nova fase da revista, Steve Ditko, transformou a revista em um laboratório para as mais diversas experiências narrativas que exploravam todas as possibilidades do desconhecido mundo além da matéria. O sucesso do título foi até mesmo apontado por alguns (como o já citado Fredric Wertham) como um dos responsáveis pela explosão do LSD e outras drogas alucinógenas na década seguinte.


Mas a grande revolução da editora viria em março de 1960, com o lançamento de The Real Revelations #1, que adaptava o apocalipse descrito na Bíblia para os dias atuais, e acompanhava um grupo inicial de sete pessoas que não foram arrebatados em sua luta contra as pragas descritas no Novo Testamento. Bebendo pesadamente em influências que iam dos filmes de ficção científica dos anos 1950 aos escritos de H.P. Lovecraft, o título trazia uma profusão de monstros impossíveis, naves espaciais, dragões super-inteligentes e os assustadores horrifying horsemen (cavaleiros horripilantes), homens deformados vestindo couraças de fogo e enxofre e montando cavalos com cabeças de leão e caudas que eram serpentes venenosas (seguindo fielmente a descrição de Apocalipse 9). 


Foi, de certa forma, essa nova fase assumida pela AD Comics que permitiu o surgimento da BC Comics, alvo principal da análise desse artigo. Afinal, foi a decisão dos editores da AD Comics de atualizar a ambientação de suas histórias e abandonar totalmente seu caráter histórico que deixou um vácuo no prolífico mercado das biblical comics, vácuo esse que incentivou uma pequena editora, até então especializada em histórias de monstros da mitologia judaica, a se aventurar na criação de um universo compartilhado baseado nas histórias bíblicas do Velho Testamento.

ORIGENS

A editora que deu origem à BC Comics foi a Mazel-Tov Comics, fundada no final da década de 1930 e que investiu em inúmeros gêneros durante suas primeiras décadas de publicação. Eram publicadas pela Mazel-Tov histórias de bombeiros, piratas e enfermeiras, entre outros estilos mais ou menos populares na época. Em março de 1941, a editora lançou aquele que seria, durante muito tempo, seu personagem mais famoso: o Super-Semita (Super-Semit), criado por Hymie Simon e Jacob Kurtzberg e que, na capa de seu número de estreia, aparecia esmurrando o próprio Hitler. O Super-Semita, que era acompanhado por um parceiro-mirim chamado Bar Mitzvah Boy, foi um sucesso estrondoso na época, tornando-se um símbolo patriótico durante a campanha norte-americana na Segunda Guerra Mundial. O fim do conflito, porém, não foi bom para o Super-Semita, e, assim como aconteceu com diversos heróis patriotas do período, sua revista foi cancelada definitivamente no final da década de 1940.

A editora continuou publicando histórias de gêneros diversos, até que, em meados dos anos 1950, descobriu um nicho lucrativo: as histórias de monstros saídos da mitologia judaica. As diversas revistas publicadas nesse período pela Mazel-Tov (Thrilling Tales, Surprising Stories, Astounding Anthology) traziam vários seres assustadores e fascinantes, como Baal-Zebub (um monstro de 40 metros de altura e com o corpo formado inteiramente por moscas), Grievous Golem (um gigante de pedra criado por um rabino enlouquecido), Lilith (uma mulher com asas, chifres e cauda de serpente que, literalmente, devorava homens) e uma infinidade de leviatãs, behemots e nephilins, entre outros. 


O grande sucesso dessa fase deveu-se principalmente à criatividade e prolicifidade do desenhista e arte-finalista Jacob Kurtzberg (o mesmo que, anos antes, havia sido co-criador do Super-Semita), que conseguia desenhar várias revistas todos os meses, sempre mantendo um alto padrão de qualidade e inovação. Um dos principais parceiros de Kurtzberg nessa época foi o escritor Martin Lieber, sobrinho do dono da Mazel-Tov, Martin Goodman. E foi Martin Goodman que, em 1961, encarregou a dupla de iniciar uma revolução nos quadrinhos, que começaria justamente com a mudança do nome da editora e o lançamento de King David #1.

BC COMICS

Em novembro de 1961 foi lançada a primeira edição de Rei Davi, marcando a mudança de nome da Mazel-Tov Comics, que a partir daí assumiu o nome de BC Comics e passou a ter como foco aventuras estreadas pelos grandes heróis bíblicos do Velho Testamento. O título foi um sucesso imediato e espantoso, em grande parte por causa do talento de Jacob Kurtzberg, que desenhava grandiosas cenas de batalha com a mesma facilidade com que ilustrava longos diálogos entre os personagens.

Mas o traço genial de Kurtzberg não era o único atrativo do título. A criatividade e ousadia do texto de Lieber também chamavam atenção, fazendo de Rei Davi um título empolgante tanto nos momentos de guerra quanto nas tensas intrigas palacianas. Ao longo das mais de 100 edições (um recorde) feitas ao lado de Kurtzberg, Lieber se empenhou em apresentar Davi como um personagem corajoso, espirituoso, inteligente e visionário, mas ao mesmo tempo inseguro, arrogante, impulsivo e mulherengo, além de dado a momentos de melancolia. Esse aspecto da escrita de Lieber, que buscava humanizar os personagens bíblicos, passou a ser a característica mais marcante da BC Comics e seu principal diferencial em relação à maneira como a AD Comics apresentava seus personagens, tratados como seres de moral muito superior às dos simples mortais. Essa abordagem nova, que gerava uma grande identificação com os leitores, aliada com altas doses de violência (dentro, claro, do que permitia a censura da época), garantiu o sucesso de Rei Davi e estabeleceu o padrão que seria seguido pelos demais títulos da BC Comics, ao longo dos anos.
As altas vendas de King David não demoraram a gerar títulos derivados, que passaram a explorar outros lados do personagem, além de seus principais coadjuvantes. Em agosto de 1962 foi lançada a revista Young David and Jonathan, que, como o próprio nome indicava, trazia as aventuras vividas por Davi antes de ascender ao trono de Israel, quase sempre acompanhado de seu mais famoso sidekick, Jônatas, filho do invejoso rei Saul, o principal vilão do título. Cerca de um ano depois, em setembro de 1963, estreou o popular título David´s Thirty Warriors (Os Trinta Guerreiros de Davi), que abordava as batalhas vividas pelos integrantes da guarda real do rei Davi, descrita brevemente no livro de II Samuel. As histórias envolvendo os 30 eram marcadas pela criatividade dos autores (novamente, Lieber e Kurtzberg), que passaram a utilizar vários dos monstros publicados nas revistas da Mazel-Tov como antagonistas dos personagens principais. Assim, Grievous Golem, Baal-Zebub e Dreadfull Dagon (um assustador ser anfíbio gigante) voltaram em novas e ameaçadoras roupagens para enfrentar os heróicos guerreiros israelitas. Em 1974, a revista teve seu nome modificado para David´s Wild Warriors (Guerreiros Selvagens de Davi), ganhou o formato magazine e passou a ser publicada em preto e branco. Todas essas mudanças tiveram como objetivo dar mais liberdade criativa aos artistas, já que o formato liberava o título de se enquadrar nas regras do Comics Code Authority, que regulava o conteúdo das histórias em quadrinhos nos EUA. Livre das amarras da censura, a Wild Warriors pôde trazer cenas mais violentas (como decaptações e canibalismo, por exemplo) e personagens com moralidade ambígua. A força do personagem Davi era tão grande que a BC Comics passou a publicar, a partir de 1978, as histórias de David, the little shepherd (Davi, o pastorzinho), primeiro em tiras de jornal e, posteriormente, em revista própria. As histórias, voltadas principalmente para o público infantil, traziam Davi ainda criança, quando cuidava das ovelhas de seu pai e vivia sempre arrastando desajeitadamente uma grande harpa e uma funda. Ele tinha como melhor amigo uma ovelha falante (embora só ele conseguisse entendê-la) chamada Jon, com a qual travava longas conversas cheias de reflexões a respeito do mundo adulto. O caráter poético e filosófico das histórias do personagem lhe garantiu uma legião de fãs de todas as idades. O sucesso de David, the little shepherd foi apontado por muitos como a grande inspiração para a revista Calvin and Arminius (no Brasil, Calvin e Armínio), estrelada por um menino e um leão de pelúcia e lançada em 1985 pela AD Comics, tendo também como alvo o público infantil.


                Seguindo a mesma linha de Rei Davi, com personagens falíveis e histórias recheadas de ação, Lieber e Kurtzberg continuaram lançando títulos no início dos anos 1960. Em maio de 1962, os leitores foram apresentados a The Smashing Samson (O Esmagador Sansão), que retratava as batalhas do forte e corajoso juiz de Israel contra os filisteus e outros vilões. O personagem se destacava, principalmente, por seu temperamento estourado e pelo seu fraco por mulheres. O sucesso de Smashing Samson foi tão grande que ele chegou a ganhar uma série de desenhos animados chamada Young Samson and Goliath, produzida pela Hanna-Barbera e lançada em 1967. A série, ambientada nos dias atuais, trazia Sansão acompanhado de um leão inteligente (o Golias do título). 



Em agosto de 1962 a dupla trouxe aos leitores as aventuras de Enoch, the giant killer (Enoque, o matador de gigantes), que se passavam em um mundo pré-diluviano, onde o bisavô de Noé lutava contra anjos rebeldes, seus descendentes (os colossais nephilins), e até mesmo dinossauros (!!!).
Em março de 1963 foi lançado Solomon, the wiser man on the world (Salomão, o homem mais sábio do mundo), que apresentava as histórias do rei de Israel em sua identidade secreta, Jedidias, um próspero mercador judeu que se dedicava a solucionar crimes misteriosos, ao estilo de um Sherlock Holmes semita. O personagem também sofria de um grande fraco por mulheres e sua principal antagonista era a formosa e brilhante Makeda, rainha de Sabá, que aparecia ora como vilã, ora como interesse amoroso.
Mas foi em setembro de 1963 que a dupla criou aquela que seria o segundo título mais popular da BC Comics, chegando muitas vezes a superar o próprio Rei Davi: The Protectors of Everything (Os Protetores de Tudo). O grande chamariz dos Protetores era a bizarra e inovadora ideia de unir personagens bíblicos de várias épocas diferentes e colocá-los para enfrentar, juntos, ameaças cósmicas e interdimensionais. O grupo era formado, a princípio, por um jovem Moisés, recrutado quando ainda era um pastor exilado no deserto e não pensava nem remotamente em ser o libertador de Israel (ele passou a ser o constantemente inseguro líder de campo do grupo); um também jovem Davi, que havia acabado de derrotar o gigante Golias e estava aprendendo as artes da guerra; um Sansão cego, retirado das masmorras dos filisteus, mas que possuía uma força descomunal; e o ainda adolescente aprendiz de profeta Eliseu, que havia estreado meses antes como sidekick na revista Elijah, the Miracle Maker (Elias, o Fazedor de Milagres). Esse grupo disfuncional foi recrutado por Noé, o Construtor, que os capturou em diferentes períodos da história e os levou para a sua Arca Cósmica, com a qual conseguia navegar entre as dimensões. Ao final do primeiro arco de histórias (no qual enfrentam um Hitler que havia vencido a II Grande Guerra em uma realidade paralela e que decide, através da avançada tecnologia nazista de sua dimensão, viajar para diferentes planos com o objetivo de “apagar os judeus do multiverso”, no que ele chamava de “Solução Definitiva Definitiva”) os leitores descobrem que o líder secreto do grupo não é ninguém menos que um envelhecido Rei Salomão, que passou a utilizar sua inteligência inigualável para enfrentar ameaças ao próprio continuum espaço-temporal. 

O nível de criatividade das histórias era absurdo, e o título se tornou um marco da ficção científica, apresentando os mais diferentes e estranhos mundos. Em uma das suas histórias mais famosas, os personagens lidam com uma realidade onde os judeus nunca chegaram à Terra Prometida, que continuou, portanto, a ser habitada pelos cruéis cananeus. Milênios depois, esses cananeus são a nação mais poderosa e militarizada do mundo, e sua necessidade de oferecer sacrifícios de crianças ao deus Moloque os faz roubar bebês de outras dimensões, já que todos os daquele mundo já haviam sido assassinados. Em outra aventura marcante, o grupo conhece uma dimensão onde a confusão de línguas nunca aconteceu, e assim toda a humanidade vive em uma torre gigante com formato de pirâmide, onde habitam 3 bilhões de pessoas, divididas em andares com milhões de habitantes em cada um. Nesse mundo, eles interferem em uma guerra travada entre o 32º andar, lar da Tribo-nação de Judá, e o 266º andar, onde viviam os habitantes do Império Austro-Húngaro. Eles também conheceram mundos onde o dilúvio nunca aconteceu (em um destes, um ensandecido e imortal Caim decide dar cabo de toda a humanidade através de plantas geneticamente modificadas, levando ao limite seus impulsos fratricidas), onde os judeus não foram libertados do Egito (em uma das histórias, os descendentes dos judeus, incorporados definitivamente à nação egípcia, fazem dela o país mais tecnologicamente avançado do mundo, transformando seu faraó, no que seria o ano 5.000 de nossa era, em um tirano interdimensional que tenta ampliar seu domínio através de outras realidades); e até um mundo onde Adão e Eva não chegaram a comer do fruto proibido. Nessa última história, o Jardim do Éden se estendeu por toda a Terra, que se transformou em um planeta de paz infinita, habitado por homens e mulheres perfeitos, além de animais inteligentes. Na trama, milhões de habitantes desse mundo utópico passam a se viciar em uma estranha droga alucinógena conhecida como “gevil”, traficada por uma misteriosa sociedade secreta, cujos membros eram conhecidos apenas como “serpentes”. Mais tarde, descobriu-se que a tal droga era feita a partir da própria polpa das frutas apodrecidas da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, roubadas pelas “serpentes”.  Essa história, no entanto, jamais viu a luz do dia, porque o Comics Code Authority implicou com as alusões levantadas pela trama, embora os autores alegassem que se tratava de um alerta contra as drogas (isso em 1971). Assim, toda a edição foi sumariamente censurada, e apenas algumas páginas não finalizadas chegaram a ser divulgadas ao público, anos depois. 

O grupo possuía, também, uma contraparte maligna, formada pelo gigante filisteu Golias, pela sedutora Dalila e pelo rei babilônico Nabucodonosor, em sua fase animalesca, com garras afiadas e corpo peludo. O grupo era comandado por um ensandecido rei Acabe (mais tarde, foi revelado que o verdadeiro mentor dos vilões era a rainha e feiticeira fenícia Jezabel, que manipulava Acabe e todos os outros). Ao invés de uma Arca Cósmica habitada por milhões de casais de animais interdimensionais, como era o caso dos Protetores, a base de operações dos Aniquilators (Aniquiladores, nome assumido pelo grupo) era a Pirâmide de Gizé, que existia simultaneamente em todas as realidades e era “pilotada” pelo faraó Ramsés II, o Grande.


Outro grande atrativo das histórias dos Protetores era a possibilidade de crossovers, ou seja, encontros com personagens de outras editoras. Assim, foi nessa revista que os leitores conferiram o aguardado embate entre o Esmagador Sansão e o Incrível Hulk, da Marvel Comics; se deliciaram com a aliança formada entre Salomão e Batman, da DC Comics, para vencer a dupla de vilões Coringa e Dr. Josef Mengele, o Anjo da Morte, que haviam se unido para praticar assustadoras experiências genéticas em Gotham City; se divertiram com a disputa travada entre Noé, o Construtor, e o Professor Pardal, da Disney, para decidir quem era o maior inventor; e se emocionaram com o encontro dos profetas Elias, o Fazedor de Milagres, da BC Comics, e João Batista (John, the Baptist, da AD Comics), naquele que foi o primeiro crossover entre as duas maiores rivais do mercado de quadrinhos bíblicos. Essa última história foi extremamente interessante, já que, além de destacar de forma sutil as diversas semelhanças entre os personagens, termina com Elias fazendo uma irônica advertência ao profeta do Novo Testamento: “cuidado com as mulheres, principalmente as rainhas”.


DECADÊNCIA
            Dominando completamente o mercado durante a maior parte dos anos 1960 e 1970, a BC Comics viu seu poderio começar a diminuir em 1977, ano em que Jacob Kurtzberg, chateado por diferenças criativas por Martin Lieber e por sentir que seu trabalho na criação dos personagens não era suficientemente reconhecido (afinal, ele era “apenas o desenhista”), decidiu deixar a editora e migrar para a AD Comics, sua principal concorrente. Lá, Kurtzerg promoveu uma verdadeira revolução, assumindo argumentos e desenhos de importantes títulos: Ethiopia´s  Eunuch (Eunuco da Etiópia, o primeiro herói bíblico negro da história); Mister Miracle (Senhor Milagre, narrando as histórias do evangelista Filipe e sua capacidade de teletransporte); e Timothy, Paul´s Pal (“Timóteo, amigo de Paulo”, trazendo as aventuras do jovem discípulo de Paulo).
            A nova fase da AD Comics foi muito bem recebida pelo público e pela crítica, ao mesmo tempo em que os principais títulos da BC Comics passaram a perder leitores. Isso trouxe um equilíbrio para a competição entre as duas editoras, que passaram a disputar mês a mês a liderança do mercado. Esse equilíbrio perdurou durante toda a década de 1980, até que, no início dos anos 1990, uma série de decisões desastrosas tomadas pelos executivos da BC Comics acabaram por levar a editora à falência, decretada de forma definitiva em 1996. Os seus personagens, no entanto, foram adquiridos pela Disney, que, animada pelo sucesso alcançado pela concorrente AD Comics no cinema (seu primeiro filme, A Paixão de Cristo, de 2004, rendeu mais de US$ 600 milhões ao redor do mundo), pretende lançar um universo compartilhado cinematográfico nos próximos anos. Aparentemente, a estreia será com o personagem Salomão, e rumores indicam que Robert Downey Jr. deve viver o gênio/playboy/bilionário/detetive na tela grande. Aguardemos.

Minas Gerais, agosto, 2006

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

CONTO #4: A PIA


A PIA 



Ao chegar no inferno, Seu Sifo foi apresentado à sua punição: uma enorme pia de mármore branco, repleta de louça suja. O encarregado do lugar (ao menos era o que indicavam os chifres e o tom avermelhado da pele) declarou, em uma voz gutural: “seu trabalho será deixar esta pia completamente limpa!” Em seguida, desapareceu, em uma nuvem de enxofre e uma gargalhada sinistra.

Seu Sifo, que em vida nunca havia lavado uma vasilha (motivo de constantes reclamações de Dona Vita, sua saudosa esposa), resolveu encarar a nova responsabilidade, já que parecia mesmo não haver outra opção. Aos poucos, a enorme pilha de louça foi sendo vencida pelo seu trabalho, as vasilhas limpas sendo colocadas ao lado da pia interminável. Pareceu-lhe que, ao final de algumas horas, o serviço estaria concluído.

Ledo engano: quando faltavam apenas algumas dezenas de vasilhas, uma porta do cômodo em que estava foi aberta com um estrondo, um outro condenado entrou e, sem cerimônia, derramou sobre a pia outras centenas de pratos, copos e talheres sujos. O abrir da porta deixou entrar na cozinha um som bem animado de festa, que Seu Sifo concluiu que só poderia estar acontecendo no Céu, ou em um ambiente igualmente feliz.

Seu Sifo decidiu não se abater e continuou o serviço, com a mesma determinação. Mas poucas horas se passaram até que ele entendeu o que, de fato, estava acontecendo: parecia-lhe óbvio, agora, que o seu serviço estava destinado a nunca ter fim. A porta da cozinha sempre estava sendo aberta, e por ela constantemente entrava algum condenado para preencher novamente a pia, sem que Seu Sifo conseguisse limpá-la por completo.

Esta era, portanto, sua punição: lavar vasilhas por toda a eternidade, e sempre ver a montanha de louça suja à sua frente, não importando o quanto se esforçasse. Por vezes, Seu Sifo achou que conseguiria limpar a pia de mármore completamente. Uma vez, restaram apenas os talheres. Mas a porta era infalível, e a louça que vinha da festa nunca cessava de chegar.

Passaram-se alguns séculos nesta toada, até que um dia um pensamento novo pousou na cabeça de Seu Sifo. Ele percebeu que era, de fato, um privilegiado, em sua situação. Afinal, era um imortal, já que a passagem dos anos não o envelheceu nem um dia (isso ele atestava ao contemplar seu reflexo nas travessas de prata). Além disso, tinha um propósito, uma razão de existir (algo que nunca quando vivo): deixar a pia limpa. Para melhorar tudo, entendeu (e aceitou), que seu propósito era inatingível, e por isso mesmo nobre, e portanto, trágico (palavras que nunca associara a si mesmo, durante a vida sem graça que vivera). Tinha, portanto, algo para fazer eternamente, e a tranquila certeza de que nunca mais iria precisar de sair de sua zona de conforto, enfrentando o novo e o desconhecido. Descobriu que, para ele, aquilo era o Paraíso. 





quarta-feira, 1 de agosto de 2018

CONTO #3 - O GÊNIO


O GÊNIO




            Quando saiu de casa, naquela manhã fria, a última coisa que Adriano imaginava é que encontraria um gênio. No entanto, contra todas as probabilidades, foi exatamente o que aconteceu.
            O gênio (um sujeito baixo, meio calvo e gordo por inteiro, a pele de um tom azulado e as orelhas estranhamente pontudas), estava, como manda a tradição, em uma velha lâmpada dourada, que se encontrava jogada na beira da sarjeta. Adriano, ao se deparar com o inesperado objeto (ainda mais inesperado por não estar jogado em uma rua deserta de uma pequena cidade do Oriente Médio, mas sim em uma movimentada via de mão dupla na zona leste de São Paulo), fez o que qualquer jovem pobre e desempregado faria naquela situação: apanhou rapidamente a peça brilhante, pensando se ela poderia valer alguma coisa, provavelmente se vendida para um ferro-velho.
            Você, que está agora lendo esta história, com certeza já deduziu que o jovem, em uma tentativa de limpar a velha lâmpada, acabou por libertar o já citado gênio, que surgiu em frente à Adriano com uma expressão jovial e alegre, típica de quem agora estava livre, depois de passar um longo tempo em reclusão (532 anos, para ser mais exato).
            De imediato, o velho gênio informou ao jovem que, pela bondade demonstrada ao libertá-lo de sua prisão dourada, Adriano teria direito a três desejos.
-        Qualquer coisa?
-        Claro, basta pedir.
            O jovem, depois de pensar por uns 10 segundos, declarou qual era o seu primeiro desejo:
-        Quero ser rico.
-        Sem problemas, seu desejo será realizado – afirmou o gênio, que tinha o nome de Habib  Haddad Jabir Kamal, mas preferia ser chamado de Eugênio.
-        Então? - perguntou Adriano, ansioso.
-        Então o quê?
-        O dinheiro, cadê?
-        Ora, onde ele sempre esteve: nos bancos, nas carteiras das pessoas, nos caixas de supermercados...
-        Não estou entendendo. É uma pegadinha? - indagou Adriano, já um pouco exaltado.
-        Ora, claro que não. Mas você precisa entender, jovem amo, que eu sou um gênio, não um criminoso. Só existem três formas em que eu poderia lhe arrumar dinheiro. A primeira, a mais fácil, seria criar o dinheiro com meus poderes. Mas não adiantaria muito, porque as notas possuem número de série, e qualquer nota que não tenha saído do Banco Central seria apenas uma falsificação, e você ser pego com uma nota falsa não lhe traria nada além de problemas. A segunda forma seria pegar o dinheiro de outra pessoa e passá-lo para você. Mas isso eu não faria jamais, por motivos éticos, é claro.
-        E a terceira?
-        Bom, a terceira seria eu lhe arrumar um bom emprego, onde você receberia, de forma honesta e constante, os valores que lhe fariam um homem rico.
-        Tudo bem. E onde está esse emprego?
-        Bom, amo, você precisa entender que os melhores empregos normalmente são ocupados por pessoas com uma qualificação especial, obtida através de anos de dedicação aos estudos.
-        É, mas essa formação eu não tenho. Parei na sexta série.
-        Então acredito que seja hora de começarmos a resolver essa situação.


            E foi então que Adriano, incentivado pelo simpático gênio, passou a descobrir o que faria para obter uma educação que o ajudasse a obter uma boa colocação no mercado de trabalho.
            Após o gênio explicar que não poderia criar, do nada, um diploma (“não seria reconhecido por nenhuma faculdade, infelizmente”), ambos começaram a pesquisar sobre como o jovem poderia se formar. A escolha foi pelo supletivo, e, após dois anos de estudo diligente, já que obter magicamente as respostas estava fora de questão (“impedimentos éticos”), Adriano conseguiu, enfim, se formar. Ele estava, agora, preparado para a próxima fase de sua caminhada rumo à fortuna: escolher um curso universitário.
-        Eu sempre gostei de animais – confessou para Eugênio, que chegou à conclusão
imediata de que Adriano deveria fazer o curso de Veterinária (ele era um gênio, afinal).
            Em pouco tempo Adriano estava matriculado em um excelente cursinho, que pagava com o salário que recebia de um trabalho de meio expediente que arrumou em uma firma de limpeza de móveis a domicílio. Adriano não passou no vestibular da primeira vez, o que quase o fez desistir, mas o apoio incondicional e os conselhos de Eugênio o convenceram a tentar mais uma vez, e foi assim que ele ingressou em uma Universidade Pública de alto nível para, finalmente, realizar o curso tão sonhado.
            Foram anos de esforço e estudos até que Adriano obtivesse o tão desejado diploma. Então, mais alguns anos se passaram até que ele conseguisse abrir a própria clínica, através de um empréstimo da Caixa Econômica. Foi em uma manhã quente de domingo, enquanto preparava sua declaração de Imposto de Renda, que Adriano se deu conta: estava rico.
-        Eugênio – disse, enquanto esfregava a velha lâmpada que conservava ao lado da cama – quero fazer meu segundo desejo.
            O gênio surgiu imediatamente, com a jovialidade de sempre.
-        Pois não, querido amo, em que posso servi-lo?
-        Quero me casar.
-        Sem problemas, seu desejo será realizado – respondeu o gênio, com a tranquilidade que lhe era característica.
-        E onde ela está?
-        Ora, isso teremos que descobrir juntos.
-        Como assim?
-        Veja, amo, como você sabe, já temos algum tempo de convivência, e é justo que eu diga que lhe conheço um pouco melhor do que da primeira vez que nos encontramos. Quando você diz que quer uma esposa, devo dizer que entendo que esta esposa deve trazer algumas características específicas, que eu acredito que você considere fundamentais.
-        E quais seriam?
-        Principalmente, acredito que você deseja que ela o ame.
-        Isto é óbvio.
-        Sim, claro, como eu imaginei. E você entende, por certo, que o amor, para ser amor, deve ser espontâneo, senão não seria amor, mas uma simples imposição.
-        É claro.
-        Perfeitamente claro! Agora, do meu ponto de vista, eu teria duas opções para lhe arrumar uma esposa imediatamente. A primeira seria criar a mulher do nada, usando meus poderes mágicos. Mas essa mulher, vamos chamá-la assim, teria que ser criada com a ausência de algo que pertence a todos os seres humanos (e permita que eu faça essa distinção, já que nós, gênios, não sofremos dessa particularidade, já que vivemos apenas para realizar os desejos de nossos amos), que seria a faculdade do livre-arbítrio, ou da liberdade de escolha. Se eu a criasse dessa forma, ela poderia ser chamada de qualquer coisa, menos de um ser humano. E eu acredito que você deseje, como esposa, alguém que possa ser considerado, pelo menos, humana.
-        Concordo.
-        Pois bem, passemos então à segunda opção: você poderia escolher uma mulher já existente, real, de sua preferência, e eu usaria meus poderes para fazer com que ela se apaixonasse perdidamente por você. Ao fazer isso, porém, esbarraríamos no mesmo problema: a sua futura esposa não teria nenhuma escolha no processo. De fato, você estaria se casando com um ser tolhido de sua característica mais humana, que é a capacidade de tomar decisões conscientes. E o pior não é isso: você, com o tempo, a amará de verdade, e sofrerá diariamente com o fato de não saber se é correspondido, ou se todo o sentimento que ela demonstra por você é simplesmente a maneira como eu ordenei que ela agisse. Seria, de fato, um inferno.
-        Entendo. Será que você sugere alguma outra opção?
-        Na verdade, sugiro sim. É, ao meu ver, a única solução que atenderia ao que você, de fato, precisa.
-        E como seria isso?
-        Bom, primeiro, vamos nos concentrar em uma mulher real.
-        Tudo bem, mas qual?
-        Ora, você escolhe. Mas o ideal seria uma que tivesse alguma coisa em comum com você. Que goste de animais, por exemplo.
-        Sim, talvez alguma cliente...
-        Ou alguma colega. Convenções são boas oportunidades de conhecer pessoas. Depois, você só tem que ser você mesmo, e aí, se ela quiser, poderá dar, espontaneamente, o amor que você procura em uma esposa. Se não, poderá tentar com outra, até encontrar, de fato, o que você precisa.


            Assim, em pouco tempo, seguindo os conselhos do gênio, Adriano estava namorando uma bela e jovem veterinária gaúcha. O casamento aconteceu em Porto Alegre, seguido de uma festa pequena e bonita, com a presença dos parentes mais próximos e amigos mais chegados. Eugênio, é claro, foi um dos padrinhos, o mais feliz e radiante.
            O casamento havia ocorrido há apenas poucas semanas quando Adriano esfregou a lâmpada pela terceira vez. Eugênio surgiu em meio a uma nuvem de fumaça, com a polidez que lhe era característica:
-        Pois não, Amo. Pronto para fazer seu último desejo?
-        Sim, acho que, finalmente, estou pronto.
-        E qual seria?
-        Bom, Eugênio, o que eu quero mesmo é viver para sempre.
            Eugênio abriu um sorriso largo, resignado, como se já houvesse ouvido o mesmo desejo centenas de vezes antes (e de fato ouvira).
-        Sem problemas, seu desejo será realizado. De fato, o momento é dos mais oportunos, visto que agora o senhor é um homem casado. A maneira mais simples, e a mais antiga, de viver para sempre, é tendo filhos. Mas, atenção: ter filhos não é suficiente. Você precisa participar ativamente da criação deles, incutindo nos pequenos os seus princípios pessoais, que eles vão levar para a vida toda e, um dia, passar adiante, para seus próprios filhos. Além de ter filhos, eu sugeriria que o senhor começasse a escrever um livro...
-        Olha, Eugênio, esta conversa está muito interessante, mas não é nada disso que eu quero. O que eu desejo na verdade é nunca morrer mesmo, fisicamente. E quero ver você me provar que do seu jeito é melhor.
            O gênio respirou fundo, antes de continuar, calmamente:
-        Veja bem, Amo, já convivemos há um bom tempo, e por isso peço que respeite minha ousadia em falar com o senhor da maneira mais franca possível. A verdade, senhor, é que viver para sempre, fisicamente, não é a melhor das ideias. Sabe, você é humano, e humanos têm doenças, envelhecem, se machucam, são mutilados. Se qualquer uma dessas coisas te acontecer, será uma eternidade sofrendo, e o pior, sem possibilidade de alívio. Além disso, pense na solidão. Você veria todos que ama morrerem, esposa, filhos, netos. No fim, ficaria sozinho, sempre. Não é a melhor das perspectivas, concorda?
-        É, acho que sou obrigado a concordar. Mas, então, não existe opção?
-        Bom, apenas uma me vem à mente. E implica, em primeiro lugar, que você abra mão de ser humano. Só assim você vai evitar as mazelas trazidas pelo envelhecimento e a morte.
-        Mas, se eu não for humano, serei o que, então?
-        Ora, um gênio, é claro.
            E Eugênio passou a próxima meia-hora explicando para Adriano o que implicava ser, efetivamente, um gênio: a vida dentro da lâmpada, a quase onipotência, a obediência irrestrita aos desejos dos amos, a eternidade. Adriano ponderou todos os detalhes, mas estava mesmo decidido. Ao final da explanação, confirmou que sua vontade era mesmo se tornar um gênio. Apenas uma coisa o incomodava: como ficaria sua jovem esposa.
-        Acho que tenho uma solução para isso também.
-        E qual seria?
-        Bom, você precisa de um corpo de gênio, e sua esposa precisa de você. Ao meu ver, uma simples troca de mentes poderia resolver tudo.
-        Quer dizer, você vem para o meu corpo, e eu para o seu?
-        Exatamente.
-        Mas, você seria...
-        Um bom marido? Acredito que possa ser um marido dos sonhos.
            A mudança foi realizada naquela noite mesmo. Em alguns minutos, Adriano estava no velho corpo de Eugênio e, como bom gênio, se mudou imediatamente para dentro da lâmpada.
            Passaram-se cerca de duzentos anos antes que Adriano saísse, pela primeira vez, da lâmpada mágica. Quando saiu, deparou-se com uma garota jovem, bonita, um pouco acima do peso, que deu um grito histérico ao ver sair um gênio de dentro daquela velharia que havia encontrado, por acidente, jogada em uma ciclovia pouco movimentada na cidade de Nova São Paulo, capital do jovem país de Brasil do Sul (nascido após uma guerra separatista iniciada no ano de 2145). Após o susto inicial, porém, Érikkah (era esse o nome da jovem) aceitou a situação excepcionalmente bem, e ficou extremamente feliz ao ser informada de seu direito aos três desejos.
-        Quero emagrecer – desejou, após cerca de cinco segundos de hesitação.
-    Olha, ama, eu poderia, com meus poderes, fazer com que você emagrecesse imediatamente. Porém, de que isso lhe adiantaria? Logo você engordaria novamente. E então, irá gastar outro desejo para emagrecer de novo?
-        Não me parece uma boa ideia... O que você sugere, gênio?
            Adriano, bastante à vontade em seu novo papel, passou então a explicar para Érikkah que o melhor a fazer seria uma reeducação alimentar, para que ela perdesse peso de forma saudável e sem voltar a engordar no futuro. Ela logo foi convencida de que os resultados demorariam mais a aparecer, mas certamente seriam duradouros. O próximo passo, então, foi procurar um endocrinologista (que, no futuro, serão chamados de gordurólogos) para realizar uma consulta e montar um cardápio para dar início ao processo de emagrecimento.
            A pesquisa foi feita através de um antel - um anel que, respondendo imediatamente aos pensamentos do usuário, serão a forma usual de se conectar à linknet (a internet do futuro). Foram apenas alguns nanossegundos para que Adriano localizasse uma gorduróloga próxima e agendar a consulta para a manhã seguinte. Mas, antes de devolver o antel para sua ama, um pensamento passou pela cabeça de Adriano, e esse pensamento foi o suficiente para que o aparelho realizasse uma pesquisa. Em segundos, a mente do gênio foi invadida por imagens e informações sobre a vida vivida por ele mesmo, dois séculos atrás.
            Ele se viu tendo quatro filhos com a esposa, que foi de fato o amor de sua vida, ficando ao seu lado até o fim. Além da clínica veterinária, o casal também montou uma ONG para recolher animais abandonados nas ruas e encaminhá-los para a adoção. O livro que Adriano escreveu (“Seja o seu próprio gênio! – Você tem o direito de realizar seus desejos”) vendeu razoavelmente bem, e informações da época diziam que sua leitura influenciou, para melhor, a vida de milhares de pessoas. Adriano morreu velho, aos 97 anos, cercado pelos filhos e netos e contando com o respeito e admiração de todos os que o conheciam.
             - Parabéns, Eugênio, você estava mesmo certo – murmurou resignado, antes de devolver o antel para Érikkah.
            Foi uma grande surpresa quando ela se transformou, bem diante de seus olhos, no bom e velho Eugênio, que olhava divertido para o boquiaberto Adriano.
-        Eugênio? O que aconteceu com a Érikkah, com o futuro? Por que voltei pro meu velho apartamento?
-        Voltar? Você não foi a lugar nenhum, amo. Apenas realizei seu último desejo. Lembra do que você disse: “Quero ver você me provar que do seu jeito é melhor”? Palavras suas...
-        Então é isso? Acabaram os desejos?
-     Os desejos não acabam nunca, amo. Mas agora você está preparado para seguir atrás deles, sem precisar da ajuda de um velho gênio. Com sua licença, vou me retirar para minha lâmpada, até ser invocado novamente.
            Adriano e Eugênio se despediram ali, pela última vez. Depois de jogar a lâmpada no córrego de um bairro vizinho, Adriano voltou correndo para casa. Afinal, tinha muita coisa para fazer.