A história de O PRISIONEIRO foi uma das primeiras que escrevi, muito antes de pensar em criar este BLOG. Na verdade, foi uma história que me perseguiu por muito tempo, porque eu já sabia como seria todo o seu desenvolvimento, principalmente o final, mas o que me prendia (hein? hein?) era não saber como seria a forma utilizada. Pensei em fazer um conto, uma pequena novela, ou uma narrativa extensa e cheia de símbolos (como uma história de Neil Gaiman). No fim, optei por fazer um conto curto e simples, quase como uma parábola.
Comentários, críticas e sugestões são bem-vindos.
O PRISIONEIRO
A FUGA
O
Prisioneiro se surpreendeu, naquela manhã, ao olhar para a janela, a única que
havia em sua cela. Sua surpresa veio ao perceber que as cinco grossas barras de
ferro (as únicas coisas que o separavam do mundo exterior) haviam sido
reduzidas a apenas quatro. Aproximando-se lentamente, verificou que a barra
central, a que faltava, havia sido arrancada com uma certa violência da grossa
parede de pedras, que chegou a ficar levemente danificada.
Após
confirmar a ausência da barra, o Prisioneiro deu uma olhada rápida e assustada
ao seu redor. A cela, que vinha sendo sua solitária moradia há tanto tempo
(pelo menos quinze anos. Vinte, talvez?), estava absolutamente igual: quatro
paredes de pedras, tão frias e ásperas quanto sempre foram. Na parede oposta à
janela, uma pesada porta de madeira e ferro, que o Prisioneiro nunca havia
visto ser aberta, à exceção de uma portinhola, na parte inferior, por onde ele
recebia, três vezes por dia, sua ração de comida e água. Em um dos cantos da
cela estava o pequeno buraco, do tamanho de um punho, que o Prisioneiro usava
como privada. E, na parede oposta ao buraco, a pequena esteira de madeira que
lhe servia de cama.
E
era isso. Durante os últimos (20? 25?) anos aquela cela havia sido todo o mundo
do solitário Prisioneiro. E agora lá estava a janela, apenas quatro barras,
espaço mais do que suficiente para a fuga do Prisioneiro. Do lado de fora, a
paisagem não havia mudado nada: uma colina alta, cercada de campos verdejantes.
Atrás dessa colina, se erguia uma fina coluna de fumaça branca, que o
Prisioneiro sempre imaginara indicar a existência de uma vila.
E
foi num impulso, e sem olhar para trás, que o Prisioneiro fugiu de sua cela
naquela manhã. Seu objetivo estava determinado em sua mente: iria, depois de
tantos anos (será que já eram 30?), subir aquela colina, e descobrir o que
havia no mundo fora de sua cela.
A VILA
Quando
chegou à Vila, a aparência do Prisioneiro não era das melhores. Nos anos em que
passara na cela, poucos foram os banhos que tomou. E, mesmo assim, eram banhos
improvisados, que tomava se aproveitando da chuva, e somente quando o vento
estava voltado para dentro da janela da pequena cela, com suas cinco grossas
barras de ferro (quando ainda eram cinco). Parecia, em todos os aspectos, um
velho mendigo, com sua barba abundante e os trapos que usava como roupas
(durante o tempo em que estivera preso, nunca havia recebido nenhuma
vestimenta).
Mas
o Prisioneiro estava com sorte. A fumaça que o havia guiado à Vila tinha sua
origem em uma velha ferraria, localizada mais ou menos no centro da pequena
comunidade. Ao chegar à origem do fino filete branco que se erguia em direção
ao céu, o Prisioneiro testemunhou uma discussão feia, protagonizada por um
velho frágil (que vinha a ser o dono da ferraria) e seu ajudante, que o
primeiro acusava de ser um ladrão. A discussão terminou com o ajudante (agora
ex-ajudante) indo embora, ainda praguejando sobre a injustiça de que afirmava
ser vítima, e com o velho ferreiro cabisbaixo, sozinho na ferraria, a perfeita
imagem do abandono.
Talvez
movido por compaixão do velho, talvez pela sua urgente necessidade de um
trabalho, ou mesmo por puro impulso, o Prisioneiro, diante daquela cena,
resolveu falar. O fato o surpreendeu bastante. Afinal, foram muitos anos (mais
do que ele poderia lembrar) sem emitir nenhuma palavra, simplesmente porque não
havia com quem falar. O Prisioneiro chegou mesmo a se surpreender com o fato de
se lembrar como pronunciar as palavras.
- Precisa
de um ajudante?
Ao
ouvir a pergunta, o velho se virou imediatamente para o Prisioneiro. A
aparência desmazelada do homem provocou uma repulsa imediata no ferreiro, que
ainda assim respondeu, mas com uma outra pergunta:
- Já
trabalhou com isso?
- Nunca
– respondeu o Prisioneiro, sincero.
O
velho olhou novamente para o homem, desta vez com a curiosidade lentamente
superando o asco.
- E
por que eu deveria lhe aceitar?
- Bom,
– começou o Prisioneiro, de repente tomado por uma confiança até então
desconhecida – não vai lhe custar nada. Eu posso trabalhar em troca de comida e
de um lugar para morar, que pode ser aqui mesmo na sua ferraria. Você precisa
de um ajudante e eu preciso de comer. Acho que pode ser bom para nós dois.
O
velho deu mais uma boa olhada no Prisioneiro e, para o espanto de ambos,
resolveu aceitar a proposta inesperada.
As
semanas que se seguiram foram surpreendente boas. O Prisioneiro se adaptou
rapidamente ao novo trabalho e, talvez por ter ficado tanto tempo sem nada para
fazer, demonstrou muita disposição no serviço, o que agradou muito ao velho
ferreiro, que se afeiçoou rapidamente ao novo empregado.
O
Prisioneiro, em pouco tempo, mudou drasticamente de aparência: fez a barba,
engordou, passou a vestir roupas novas (dadas pelo velho ferreiro), e trazia
nos olhos um novo brilho de autossatisfação e contentamento. Este brilho
aumentava consideravelmente na hora do almoço, que era quando a filha única do
velho aparecia na ferraria, trazendo comida para os dois homens. A jovem era,
de fato, adorável, com um jeito tímido e modos polidos e agradáveis. Aos
poucos, o velho foi percebendo que, entre o Prisioneiro e a garota, surgia algo
que era mais do que uma simples amizade. Mas, como já foi dito, o ferreiro
havia se afeiçoado ao Prisioneiro, que de fato enxergava como um filho, e se
sentia feliz com a possibilidade de que sua filha pudesse se casar com aquele
homem tão sério e trabalhador.
Depois de um tempo, o velho, não com pouca surpresa, percebeu que
o Prisioneiro estava, aos poucos, separando para si parte do material que
manipulava na ferraria. Era uma quantidade mínima: limalhas insignificantes,
poucas gramas para cada quilo de ferro trabalhado. O velho notou que, até mesmo
nas raras vezes em que realizava trabalhos com ouro, o Prisioneiro ficava com
uma pequena quantidade do metal. Mas, mesmo percebendo isso, o velho não disse
nada. Não só porque gostasse do Prisioneiro (e de fato gostava), mas porque
eram quantidades muito pequenas, imperceptíveis mesmo, e o homem, de fato, não
recebia salário. As quantidades desviadas, o velho imaginou, deviam estar sendo
utilizadas para trabalhos extras, que o Prisioneiro certamente realizava à
noite, quando o velho ia embora, já que, por muitas vezes, a fumaça branca que
saía da ferraria continuava visível no céu até a alta madrugada. “Um dia”,
concluía o velho, quando pensava no assunto, “tudo isso será dele, mesmo”.
A CARTA
Foi
em uma manhã comum, igual a tantas outras, que o velho foi surpreendido, ao
chegar à ferraria, com a ausência de seu ajudante. O local estava perfeitamente
arrumado, mas vazio: nem mesmo a fornalha havia sido acesa. No local que servia
de cama para o Prisioneiro, os cobertores estavam completamente dobrados, mas
não havia sinal do homem. Foi aí que o velho viu, com um mau pressentimento, em
cima da bancada, um envelope fechado, com um nome escrito. Embora não soubesse
ler, o velho sabia que se tratava do nome de sua filha.
A
jovem chegou rápido à ferraria, depois de receber o recado do pai. Ela abriu o
envelope imediatamente, talvez com o mesmo mau pressentimento do velho. Em
poucos minutos, desabou em um choro incontrolável. A carta, como se supunha,
era uma despedida. Trazia, depois de diversos agradecimentos ao bom coração do
velho e de uma declaração de nobres sentimentos pela garota, a seguinte frase:
“espero que você encontre alguém que lhe faça feliz. E nesse dia você poderá
usar este anel, como a mulher casada que você merece ser”. O envelope realmente
tinha em seu interior, além da carta, um singelo anel de ouro, resultado de muitas
horas de trabalho noturno e feito com os fragmentos de diversas joias que
receberam, na ferraria, ajustes ou polimento.
Na
tarde desse mesmo dia o Prisioneiro estava, novamente, no alto da colina.
Diante de si, sua antiga prisão. Pela primeira vez a olhava pelo lado de fora:
era um prédio baixo, de apenas um pavimento, e composto de diversas
(incontáveis) janelas, uma ao lado da outra, todas (menos uma) com cinco
idênticas barras de ferro. Para qualquer dos lados que olhasse, o Prisioneiro
não via o fim da construção. Imaginava quantos prisioneiros havia, todos iguais
a ele, todos presos durante tanto tempo (quanto?) atrás das cinco barras de
ferro, apenas olhando a coluna de fumaça, imaginando o que haveria atrás da
colina verdejante.
O
Prisioneiro, rapidamente, identificou a sua cela: as quatro grossas barras de
ferro não deixavam dúvida de que era a certa. Em um pulo, estava novamente do
lado de dentro, que permanecia idêntico ao dia em que escapou: as quatro
paredes frias, a esteira de madeira em um dos cantos, a grossa porta de madeira
e ferro, eternamente fechada.
Rápida
e habilmente, foi tirando o conteúdo da bolsa que trazia nas costas.
Desenrolou, com uma certa reverência, um grande pedaço de pano encardido, de
onde tirou a obra que havia produzido em dezenas de noites em claro, usando o metal
que havia coletado, aos poucos, de centenas de fregueses: uma grossa e
resistente barra de ferro, idêntica à que havia sido tirada de sua cela (ele
sabia que era idêntica, porque a conhecia muito bem. Décadas – quantas? –
observando pela janela, tocando o metal frio com os dedos tristes). De outro
recipiente, tirou uma pequena quantidade de argamassa escura, que adquiriu do
pedreiro da vila, em troca de um pequeno serviço avulso. Com a argamassa, o
Prisioneiro, cuidadosamente, instalou a barra de ferro no lugar da que havia
sido levada. Em poucos minutos, estava feito: a janela novamente possuía suas
cinco barras, e o que era mundo foi reduzido a um quadro retangular, que trazia
uma colina e uma coluna branca de fumaça, que novamente surgia no céu.
O
Prisioneiro se sentou, cansado e satisfeito, no canto de sua cela. Ele quase
podia sentir o gosto da ração que, logo, seria inserida pela pequena abertura
da velha e pesada porta de madeira e ferro, que ele não se lembrava de, um dia,
ter visto ser aberta.